Manifesto

Reconhecemos a crise climática como o acontecimento definidor do século XXI e como ameaça à existência da civilização humana. Entrámos na era da ebulição. Pela sua dimensão, esta crise engloba toda a população e biodiversidade da Terra e, se nada for feito para mitigar as suas consequências, os efeitos serão devastadores e sem precedentes.
 
A concentração de dióxido de carbono na atmosfera está no nível mais alto dos últimos 3 milhões de anos e os eventos climáticos extremos são cada vez mais intensos e frequentes. O nosso orçamento de carbono é cada vez mais pequeno. O nível médio dos oceanos sobe depressa ao mesmo tempo que as reservas de água potável se tornam mais escassas. A abundância das populações globais de animais selvagens diminuiu em média 69% nos últimos 48 anos. Pelos impactos brutais da ação humana nos ecossistemas e pela possibilidade real da desregulação permanente dos ciclos naturais, que levará à deterioração acentuada da habitabilidade no planeta, a resposta à crise climática requer urgência.
 
A crise climática é apenas uma dimensão de uma crise ecológica e social mais ampla que compreende uma multitude de dimensões e que é consequência da relação entre os sistemas societais humanos e a Natureza. Esta crise traduz-se em dimensões naturais, por exemplo, na desregulação de sistemas climáticos, a perda de biodiversidade, a degradação da biosfera, a acidificação dos oceanos e a redução abruta da acessibilidade da água doce.
 
Por outro lado, há também dimensões sociais que resultam da forma como organizamos a sociedade face à nossa relação com o planeta. As suas consequências manifestam-se na poluição nas cidades, na forma como organizamos as cadeias de trabalho à escala global em função da exploração e transformação de matérias-primas, nos grandes exôdos rurais ou de ilhas que ficam debaixo de água, ou na dispersão de agentes infeciosos por novas áreas geográficas.
 
Face a esta crise global, a ação dos governos e governantes tem sido manifestamente insuficiente. “Estamos numa auto-estrada para o inferno com o pé ainda no acelerador”, afirmou o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. A expansão energética e o continuado investimento nas energias fósseis – incluindo subsídios públicos ao ritmo de 13 milhões de dólares por minuto, ou 7% do PIB global, segundo o FMI  – apesar da emissão e acumulação sem precedentes de gases com efeito de estufa na atmosfera, são um sinal de que nem o mercado funciona enquanto mecanismo de transição ecológica, nem os estados que o servem são capazes de a impôr. O impulso produtivista age como motor da crise e um travão dessa transição.
 
Por outro lado, as tentativas de transição que procuram manter os atuais sistemas de produção e consumo, apostando na tecnologia como principal força de mudança mas mantendo ainda uma mentalidade extrativista, provam-se cada vez mais desenquadradas da realidade da crise climática.
 
Precisamos de medidas de mitigação e adaptação com metas claras, objetivos concretos e calendários definidos para conseguir sair desta auto-estrada  e escapar à lógica atual da destruição climática. São precisas medidas de planificação ecológica para uma transição energética, políticas de proteção das espécies selvagens e de proteção de biodiversidade, planos de acumulação, retenção e poupança de água potável, alteração dos modos de produção e distribuição dos alimentos e tantos outros bens essenciais. 
 
Em Portugal, a seca é uma das principais ameaças à ecologia humana, pondo em causa os sistemas de produção do setor primário. O atraso na aplicação de medidas necessárias em áreas como a eficiência energética da infraestrutura e a mobilidade dificultam a redução de emissões, enquanto que o modelo extrativista e o investimento contínuo na mineração, na agricultura intensiva e na expansão das infraestruturas de gás e hidrogénio demonstram a vontade política de manter o sistema que temos.
 
O modelo de desenvolvimento económico português baseado no turismo também é um desafio à construção de um modelo societal compatível com a ciência climática. O desenvolvimento desenfreado da indústria turística traduzido num modelo de turismo massificado implica a exploração e destruição da Natureza, o aumento de emissões na construção e nos transportes aéreos e a construção de infraestruturas que dificilmente são readaptadas para um novo modelo económico baseado na planificação ecológica.
 
Para contrariar a inação dos governos e a vontade política de manter o sistema atual de exploração ambiental, acreditamos na necessidade de um movimento de massas e na criação de uma maioria social com uma visão de futuro coletivo e a mudança necessária. Este movimento pode também construir a transição desde baixo, pensando formas de ação política para além do Estado e desenvolvendo a políticas de justiça climática a nível dos bairros, das cidades e dos munícipios. Achamos necessária uma visão crítica que vá para além da superficialidade, das visões individualistas que impõem um paradigma de escolhas de consumo, e das visões voluntaristas que impõem o ultimato catastrofista.
 
 
II
 
Propomos uma plataforma de discussão ativa sobre a crise climática e ecológica, a transição necessária e o movimento que a pode alcançar. Uma ferramenta ao serviço da construção de um movimento mais amplo que reúna ativistas, investigadores, pessoas preocupadas de outras esferas laborais e sociais, que consigam criar pensamento sobre as várias vertentes teóricas, práticas, filosóficas, artísticas desta crise.
 
Queremos que a linha editorial vá para além do imediatismo e da superficialidade e que consiga fazer os debates estratégicos e programáticos necessários. Que possa tomar uma parte na disputa política e social mas que esteja aberta à contradição e ao debate interno e externo, à resposta e à contra-resposta. Que aborde questões interseccionais muitas vezes escondidas ou afastadas das questões climáticas, mas não assuma a questão climática como o fio conector de todos os movimentos sociais. Que contrarie uma abordagem meramente técnica ou tecnocrática da resolução da crise climática e que abrace a multiplicidade de saberes e pontos de partida, com a noção de que há temas para os quais as respostas não estão ainda à vista e que são precisos aprofundar.
 
Para tal, este projeto deve ser composto por uma multitude de formatos jornalísticos, académicos e literários que consigam cumprir estes propósitos através da abordagem binómica entre um número periódico que aprofunde temas específicos e uma cobertura de atualidade que consiga acompanhar a crise e a luta climática presencialmente e ser um ponto de convergência entre toda a gente que procura compreender melhor o problema em questão e a transição necessária.
 
Esta plataforma assume um compromisso democrático e de abertura, que prioriza o debate e a troca de ideias, não tolerando o ódio nem comentários ou posições de debate que promovam ideias anti-democráticas, racistas, misóginas.