Texto de Andreia Galvão

E se o futuro já tiver acabado?

Quando falamos sobre a crise climática fala-se, tendencialmente, de tempo. Do tempo que resta para o fim do planeta tal como o conhecemos. Do tempo que resta para o fim da espécie humana. Do tempo que resta para o fim do tempo. Para as transformações sociológicas necessárias e os prazos nos quais têm de se concretizar, de acordo com os alertas dos cientistas, para impedir o desabamento de ecossistemas inteiros. 

Há um ano escrevi uma peça de teatro chamada Hotel Chronos. Conta a história de duas mulheres e de um relojoeiro que cuidam de um hotel onde não aparecem clientes há anos, como se a manutenção da rotina pudesse inverter este fenómeno. O relojoeiro vai passando, alertando para o entorpecimento do relógio do hotel cujo parar definitivo significa o fim do mundo. Esta tragicomédia absurda é também a história de duas mulheres que não se apercebem de que a tragédia já aconteceu e que habitam a ausência de futuro.

Aceitando que cada situação carrega consigo o seu passado e o seu futuro, é inevitável não olhar para a evolução do capitalismo global com grande apreensão. Os tempos de sociedades com políticas redistributivas mais igualitárias, com a promoção de serviços públicos, parecem estar a tornar-se cada vez mais um sonho longínquo. O empobrecimento dos Estados, a taxação excessiva sobre o trabalho, a devastação climática e da biodiversidade, a acumulação de propriedade que, como alguns economistas anunciam, mimetiza os regimes de acumulação feudais apropriando a inovação tecnológica como modo de expansão (Tecno-feudalismo, chama-lhe Yannous Varoufakis). Vagas de extrema-direita percorrem a Europa, tornando os Estados progressivamente mais autoritários. A ansiedade é um problema crónico das sociedades contemporâneas do norte global e verifica-se essa emoção nas gerações mais jovens que crescem num mundo em retrocesso. Por exemplo, a eco-ansiedade é descrita pela American Psychology Association (APA) como 

o medo crónico de sofrer um cataclismo ambiental que ocorre ao observar o impacto, aparentemente irrevogável, das mudanças climáticas gerando uma preocupação associada ao futuro de si mesmo e das gerações futuras e o termo solastalgia, cunhado pelo  filósofo australiano Glenn Albrecht define um conjunto de distúrbios psicológicos que ocorrem numa população nativa após mudanças destrutiva no seu território.¹

 “How to Cope with Climate Anxiety, with Thomas Doherty, PsyD, and Ashlee Cunsolo, Phd.” American Psychological Association.

 Como disse Orwell no seu magnus opus 1984: Se quiserem uma imagem do futuro imaginem uma bota a pisar numa cara humana- para sempre.

A profecia está desenhada. O relógio do apocalipse, uma construção simbólica administrada pela entidade sem fins lucrativos Bulletin of the Atomic Scientists (BAS)², que mede a proximidade da humanidade do desastre com base nas séries de ameaças vividas, está a 90 segundos da meia-noite, o valor mais próximo de sempre. O pessimismo que encontramos no discurso mediático é somente variável na forma que essa devastação tomará: será a guerra total/nuclear? A luta por recursos? A seca ou a inundação?

²“Current Time – 2024.” Bulletin of the Atomic Scientists

O neo-negacionismo climático, promovido em diversos órgãos de comunicação, especialmente de direita, diferencia-se do negacionismo tradicional porque já não nega os efeitos reais da crise climática. Ao invés disso, centra-se na promoção da ideia de que já não há caminho possível para inverter a catástrofe, de que a história já acabou e que as revoluções são coisas do século passado. De novo, a bota na cara.

Muitos ativistas climáticos promoveram esta narrativa como forma de mobilização, por acreditarem que a evidência científica e o desespero levariam, inevitavelmente, a uma revolta popular contra as elites políticas e económicas. Desde exemplos nacionais (o coletivo Climáximo emprega-a na narrativa da guerra contra a Humanidade) a exemplos internacionais, como o livro mediático do engenheiro agrónomo Pablo Servigne e do pesquisador Raphaël Stevens Comment tout peut s’effondrer (Como tudo pode desmoronar), de 2015. A aparente observação de um colapso inevitável à luz dos diagnósticos da ciência, deu origem a um termo que designaria, segundo o Le Monde ( na sua edição de 14 de janeiro de 2018), uma nova área interdisciplinar, a colapsologia, a ciência da catástrofe ecológica. A corrente da colapsologia, por muitas vezes não responsabilizar o sistema atual de produção- o capitalismo fóssil – favorece frequentemente a ideia de que a Terra tem um problema chamado humanidade que só será resolvido quando esta for erradicada. 

É fácil simplificar a questão entre o debate no âmbito discursivo. Quando debatemos se o que é mais mobilizador é o discurso catastrofista ou o discurso da esperança não reparamos que a questão profunda (e realmente importante) é que a dicotomia da esperança/desesperança é só pensável dentro do que hoje consideramos possível. E cumprir um novo mundo implica utilizar mecanismos de pensamento radicalmente diferentes, onde não haja lugares óbvios. Apesar disso esta problemática, parece-me estar certas sobre um aspeto: o futuro já não existe.Em francês há dois termos que, embora pareçam semelhantes, são etimologicamente e ontologicamente bastante diferentes- future e avenir. O futuro, o futuro simples, a mera continuação da trajetória dos sistemas da sociedade dentro dos enquadramentos da possibilidade tal como hoje  os conhecemos, já não é possível. A crença de que o que acontecerá em diante será uma mera replicação do passado ou do presente não só nos rouba o potencial imaginativo como simboliza a morte da agência individual e coletiva. Precisamos de avenir, o que está por vir, de um rompimento. É esse que tem de ser tornado inevitável.