Texto de Patrick Ribeiro
Foi há pouco mais de um ano, no canal do YouTube “Our Changing Climate”, dedicado a temas relacionados com o capitalismo e as mudanças climáticas, que escutei pela primeira vez a palavra Solarpunk. Num vídeo intitulado “Porquê precisamos de utopias”, o autor enfatiza a importância de imaginarmos futuros utópicos para conseguirmos enfrentar os desafios impostos pelo capitalismo global e pela destruição ambiental, apresentando o Solarpunk como uma das visões utópicas mais aliciantes para este propósito.
Rapidamente entusiasmei-me com a ideia do Solarpunk e, quanto mais investigava e aprendia sobre a visão, mais fascinado ficava. A narrativa do Solarpunk era, de certa forma, diferente de tudo o que tinha ouvido anteriormente. Integrava muitas das ideias que já conhecia e defendia, o que lhe conferia um caráter familiar com o qual me identifiquei naturalmente. Mas o modo como a visão era apresentada, conferia-lhe algo de novo, revolucionário, apetecível. Sentia-se como uma lufada de ar fresco face às perspetivas aterradoras atuais para o futuro da humanidade. A abordagem positiva e holística da visão Solarpunk veio de alguma forma contrariar uma certa resignação que tenho vindo a experienciar ultimamente. Quanto mais me aprofundo no tema, mais me convenço de que o Solarpunk pode servir como uma ferramenta essencial na criação de uma resiliência emocional em muitos, orientando-os a superar os desafios contemporâneos com uma visão renovada e otimista do futuro.
Mas afinal, o que é o Solarpunk? Nas linhas seguintes, darei uma introdução ao imaginário do mundo Solarpunk, destacando que, mais do que uma mera fantasia, o Solarpunk é um movimento bastante real, com propostas concretas de transformação positiva para a sociedade. Para salientar o potencial transformador da narrativa Solarpunk no mundo real, começarei com uma reflexão sobre o poder das narrativas.
Como narrativas moldam realidades
Histórias formam as sociedades desde os primórdios da humanidade. As nossas ideias, valores, princípios e até mesmo emoções baseiam-se em narrativas. Culturas inteiras fundamentam-se em narrativas e quem as controla, define o curso da história. As marcas não nos vendem produtos, mas sim promessas de felicidade, exclusividade ou sucesso. Nos meios de comunicação, a narrativa vai além de apresentar informações ou entretenimento, cria experiências, molda perceções e influência emoções. E a política também não se poupa em promessas de um futuro melhor ou, no caso do populismo, em alertas sobre os horrores presentes e futuros, gerando, respetivamente, falsas esperanças ou medos e ódios no seio da sociedade.
Com o surgimento da disciplina do “marketing”, nos anos 80, o sistema capitalista refinou e aperfeiçoou a arte do “storytelling” a um patamar sem precedentes, com o único objetivo de fomentar o consumo e, direta ou indiretamente, reafirmar-se como único sistema possível, com a consequência de que a maioria das histórias que nos são contadas são as que vendem melhor, independentemente das ideias, dos valores e das visões transmitidas poderem ser nocivas para a sociedade. Uma caraterística essencial humana que o marketing explora, é a tendência das pessoas darem mais atenção a informações e estímulos negativos, graças a um mecanismo evolutivo de sobrevivência que nos leva a focar mais em potenciais ameaças à nossa segurança e bem-estar do que a impulsos positivos.
É assim, que, nas últimas duas décadas do milénio passado, se observa um aumento de narrativas distópicas. Um exemplo é o género literário e artístico denominado Cyberpunk, que consiste numa visão distópica para a humanidade, onde a tecnologia digital (cibernética, inteligência artificial, realidade virtual, etc.), estão ao serviço de mega corporações e/ou regimes totalitários para o controlo de uma sociedade em decadência num cenário de colapso ambiental. No mundo do cinema aparecem filmes como Blade Runner (1982), Ghost in the Shell (1989) ou The Matrix (1999), que marcaram gerações. Tal como no cinema, o Cyberpunk expandiu-se também rapidamente no mundo da literatura e dos videojogos, estando hoje mais do que nunca presentes no nosso imaginário coletivo.
Somos bombardeados com visões distópicas do futuro nos mais diversos meios de comunicação. Consumimos estas narrativas tóxicas sem nos questionarmos sobre o que fazem connosco. Estudos psicológicos mostram que a exposição às mesmas tem consequências significativas na nossa saúde mental, a ansiedade climática sendo uma delas. Não nos apercebemos que a nossa capacidade de imaginar realidades alternativas para o futuro se torna cada vez mais limitada. Porque não nos são apresentadas alternativas. A normalização de uma visão muito estreita de um futuro distópico leva não só à aceitação dela, mas também a amplificá-la, a reproduzi-la. Inquéritos mostram que, atualmente, é mais fácil para as pessoas imaginarem o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Faltam-nos as histórias e as visões de um futuro alternativo que valha a pena viver, e que nos ajude a reimaginar a trajetória que queremos para a humanidade. A psicologia ensina-nos que a esperança inspirada por narrativas positivas tem o poder de motivar indivíduos a estabelecer e perseguir metas construtivas.
Solarpunk: a visão inspiradora de uma utopia possível.
O Solarpunk surge como a antítese ao Cyberpunk e outras ficções (científicas) distópicas. O movimento emerge ao longo da primeira década do novo milénio, mas ganha popularidade como género artístico e literário a partir de 2015.
Sendo por natureza pós-capitalista, a visão Solarpunk rejeita o futuro do colapso para o qual o capitalismo atualmente nos leva. Foca num futuro a ambicionar, e não num a evitar. Reconhece a realidade do colapso ambiental iminente, mas incorpora esperança proativa na sua visão. É na sua essência otimista e recusa o fatalismo, tão presente na cultura do Cyberpunk. O Solarpunk fornece uma visão positiva para o futuro, sublinhando a necessidade de sustentabilidade ambiental, auto-governação e justiça social. É simultaneamente antropocêntrico e ecocêntrico, onde o ser-humano existe em harmonia com e como parte dos ecossistemas terrestres.
Esta visão reflete-se na estética vibrante da arte Solarpunk, que combina o prático com o belo e é um manifesto de inovação ecológica que forma a espinha dorsal de sociedades resilientes e autossuficientes. A arquitetura Solarpunk, integrada à natureza, utiliza telhados verdes, fachadas vivas e estruturas que imitam formas orgânicas. A energia solar e outras tecnologias sustentáveis são pilares visuais, com painéis solares e turbinas eólicas integradas com a paisagem urbana, simbolizando um compromisso com as energias renováveis. Transportes limpos e eficientes percorrem as cidades, enquanto tecnologias trabalham em harmonia com ecossistemas saudáveis, exemplificando uma simbiose entre avanço tecnológico e conservação ambiental. As cidades Solarpunk são retratadas como utopias verdes, onde a agricultura urbana e espaços públicos ricos em vegetação promovem o bem-estar dos habitantes e uma conexão profunda com a natureza. A estética do Solarpunk inspira e faz sonhar.
A visão artística de uma cidade Solarpunk, que mostram tipicamente motivos da natureza e influências da Arte Nova, do “upcycling” e de estilos e movimentos artísticos asiáticos e africanos. (origem)
O «solar» em Solarpunk faz referência às energias renováveis como novas fontes de energia mais sustentáveis para a era pós-petróleo. O Solarpunk está aberto a todo o tipo de tecnologias, das mais arcaicas às mais sofisticadas, com a condicionante de que estas deverão solucionar desafios concretos, sempre visando minimizar o impacto ambiental e respeitando uma ética social.
Por outro lado, o termo «punk» em Solarpunk refere-se a uma abordagem que desafia o “status quo”, inspirando-se em certos princípios do movimento punk original dos anos 70. A mentalidade de ‘faça você mesmo’ (DIY, do inglês Do-It-Yourself), aliada a princípios de coletivismo e estruturas horizontais, promove tecnologias abertas de controlo e acesso descentralizado, bem como no “empowerment” comunitário. Ambicionando uma sociedade mais justa, equitativa e sustentável, o Solarpunk convida a repensar as estruturas sociais, económicas e políticas que regem não apenas a dimensão tecnológica, mas todas as esferas da sociedade, como a produção de alimentos, a mobilidade, a saúde, a habitação, entre outros.
O Solarpunk, sem uma ligação direta a uma ideologia política específica, encontra ressonância em conceções libertárias, incluindo o eco-socialismo e o anarquismo. Ambos partilham com o Solarpunk a ênfase na liberdade individual, na abolição de estruturas hierárquicas, autoritarismo, e exploração tanto humana quanto ambiental. O anarquismo promove a propriedade comum, o cooperativismo, estruturas horizontais, e a solidariedade. Essa confluência estende-se à valorização de tecnologias libertadoras, produção localizada, rejeição ao consumo excessivo e destrutivo, além de buscar uma nova forma de nos relacionarmos com a sociedade, o trabalho, a natureza, e nós mesmos.
Uma das bandeiras usadas no movimento Solarpunk: o amarelo e o sol representam o “Solar”; o verde representa a natureza; a roda dentada, simboliza o uso de tecnologias como parte da solução; e a diagonal é adotada do contexto anarco-sindicalista.
O Solarpunk é intrinsecamente plural! Incorpora a ideia de “Um mundo em que muitos mundos são possíveis”, conhecida do movimento Zapatista no México, entretanto, adotada por inúmeros movimentos sociais e ambientalistas. Um mundo Solarpunk valoriza e celebra a riqueza da pluralidade cultural da humanidade, em todas as suas manifestações, resguardando e protegendo a diversidade dos ecossistemas planetários. Poder-se-á afirmar que, num mundo Solarpunk, rege a “Multitude” como agente social, conforme definido pelos teóricos políticos Antonio Negri e Michael Hardt. A multitude é caracterizada pela diversidade e pela singularidade dos seus componentes; é uma rede global de indivíduos que, apesar das suas diferenças, são capazes de agir coletivamente em oposição ao imperialismo e ao capitalismo global.
Mas, acima de tudo, o Solarpunk é um movimento ativista real, de ação imediata. O movimento Solarpunk constrói a partir da nossa realidade atual. Quer pôr as mãos na massa. De forma pragmática. Aqui e agora. Pegando nas ferramentas e soluções já existentes para começar hoje ainda a construir um futuro melhor. Como se lê na página web do coletivo Solarpunk Labs, sedeado em Amesterdão, o objetivo do movimento é “construir para o melhor, enquanto se prepara para o pior”, fazendo referência à resiliência que a humanidade tem que criar face às transformações profundas e desafiantes que estão para vir.
Existem inúmeros exemplos práticos de Solarpunk no mundo, mesmo que não sejam necessariamente etiquetados como tal. Os “earthships”, casas construídas a partir de materiais reutilizados e naturais, energeticamente autossuficientes, com sistemas de captação e reutilização de água integrados, e com produção própria de alimentos, são uma manifestação por excelência da filosofia Solarpunk, e no que diz respeito à estética arquitetónica destas construções, da arte Solarpunk. São também inúmeras as iniciativas de comunidades de energia espalhadas por todo o mundo que assumem controlo coletivo sobre a sua produção sustentável de energia. A agroecologia, seja sob a forma da permacultura, da agricultura regenerativa ou sintrópica, ou qualquer outra forma de produção de alimentos em harmonia com a natureza, é outra manifestação que se alinha plenamente aos princípios do Solarpunk. A lista de exemplos é imensa e ultrapassaria o âmbito deste artigo.
Uma casa “earthship” em Brighton na Inglaterra. CC BY 2.0
Igualmente importante é salientar o que não é Solarpunk. Um exemplo típico – e são eles muitos – e muitas vezes mencionado, são arranha-céus de betão e aço cobertos de plantas, aparentando ser sustentáveis. Não o são! Trata-se de “greenwashing”, a prática enganosa de se apresentar como sustentável e ambientalmente responsável o que não é. O capitalismo é implacável em apropriar-se de conceitos como sustentabilidade, redefinindo-os e distorcendo-os para servir unicamente ao seu próprio objetivo. E, apesar do termo Solarpunk ter menos de uma década de existência, já se encontram os primeiros indícios de apropriação pela maquinaria do marketing e da indústria do entretenimento. Por exemplo: uma das animações Solarpunk mais populares e inspiradores na internet, conhecida como ‘Dear Alice’, é originalmente um comercial de iogurte.
Mas o Solarpunk não é apenas uma definição ou um conceito estático. É um movimento de base vivo, aberto e plural, em constante evolução, e tem, por consequência, o potencial de se defender contra a apropriação por sistemas e estruturas capitalistas, adaptando-se e reformulando-se de maneira a preservar o seu núcleo ético e os seus objetivos de sustentabilidade, inclusão e harmonia ambiental.
O poder narrativo do Solarpunk
O Solarpunk fascina-me pela visão holística e plural de um futuro positivo, tal como eu ambiciono construir. Nutre a minha esperança e, com isso, a força de vontade para continuar a trabalhar por um mundo melhor.
Há quase duas décadas que me dedico amplamente à temática da sustentabilidade em diversas áreas da sociedade. Tenho visto como inúmeras soluções são propostas para enfrentar os problemas multidimensionais com que nos deparamos. Contudo, a maioria destas propostas não são pensadas para lá dos limites do sistema em que operamos, estando, por isso, destinadas ao fracasso. A raiz do problema, especificamente o sistema capitalista global orientado para um crescimento económico desmedido, com todas as suas consequências prejudiciais para o planeta, não é abalado por qualquer das soluções implementadas. Não só não se observam mudanças no rumo desastroso que a humanidade tem seguido, como ainda se observa o “business as usual” a acelerar e intensificar muitos dos problemas. As perspetivas extremamente sombrias do que nos espera – realidade já vivida por muitos habitantes deste planeta –, incluindo, entre outros, as consequências das alterações climáticas e o colapso dos ecossistemas, sem que haja uma resposta minimamente eficaz de transição, afetam-me profundamente a nível emocional.
Em diversos momentos tentei ignorar a situação para proteger-me dos efeitos danosos que tem sobre a minha psique. Mas sei demasiado, já não me serve de muito ignorar os factos, e se não for ao nível do consciente, é o inconsciente que digere os factos. Ao mesmo tempo, recuso-me a fingir que nada se está a passar e que tudo está bem. Frequentemente, adotei uma postura de resignação, de aceitação. Afinal, não está já tudo perdido? Em ambos os casos, o meu bem-estar emocional sofre.
No entanto, existe uma terceira via. No livro “Active Hope: How to Face the Mess We’re in without Going Crazy”, Joanna Macy e Chris Johnstone introduzem o conceito de Esperança Ativa, um processo que envolve identificar os resultados que desejamos ver no mundo e nas nossas vidas para depois tomar medidas proativas para que esses resultados venham a ser reais. Os autores defendem que esta é a única maneira de manter a saúde mental e emocional, de aumentar a resiliência psíquica, ao contrário da espera passiva ou da resignação, que geram ansiedade e medo. Mas enquanto “Active Hope” apresenta os métodos e as ferramentas para praticar uma esperança ativa, a visão Solarpunk pode fornecer a inspiração necessária.
Custa-me, de uma certa forma, acreditar que a humanidade pode evitar o pior. O prognóstico científico é muito claro. No entanto, sei que sem uma visão de futuro alternativa, a mudança certamente não ocorrerá. Assim, numa mescla de pragmatismo e idealismo, abraço a visão Solarpunk, pois ela proporciona-me esperança ativa e conecta-me a um movimento global otimista, que recusa aceitar as coisas como são, e trabalha coletivamente por uma utopia alcançável. A narrativa Solarpunk é poderosa porque confere agência. O Solarpunk é mais do que somente um género: é uma postura ativa na vida, um chamado à ação, um convite para moldarmos juntos o futuro Solarpunk que ambicionamos. Hoje, mais do que nunca, posso afirmar: Sou um Solarpunk!
Uma curta história do Solarpunk
O termo Solarpunk surge provavelmente pela primeira vez em 2008 num artigo denominado “From Steampunk to Solarpunk” no blog “Republic of the Bees”, onde se conceptualiza o Solarpunk como um género inspirado no Steampunk, mas substituindo as tecnologias a vapor do século XIX, elemento que define este género, pelas energias renováveis. Em 2014 volta a ganhar atenção significativa com um post no Tumblr por Olivia Louise, que delineia os fundamentos estéticos e filosóficos do Solarpunk, enfatizando sustentabilidade, comunidade e uma mistura de tecnologia com natureza. Ainda no mesmo ano, Adam Flynn publica “Notes Toward A Solarpunk Manifesto“, que expandiu o conceito de Solarpunk, incluindo o seu papel em abordar as alterações climáticas e o fracasso da visão distópica do Cyberpunk em oferecer alternativas de esperança. Adam destaca o foco do Solarpunk em engenhosidade, comunidade e resiliência. Em 2016, é publicada no Brasil a antologia “Solarpunk: Ecological and Fantastical Stories in a Sustainable World” que passa a representar uma das primeiras obras literárias dedicadas explicitamente ao género. Já em 2019 é publicado “Un Manifiesto Solarpunk” por um grupo chamado The Solarpunk Community. Este manifesto, escrito em espanhol, reiterou sucintamente os temas centrais do género: a sustentabilidade, a resiliência e as soluções dirigidas pela comunidade para desafios ambientais e sociais. Nos últimos dois anos, o movimento tem ganho um impulso significativo graças a diversas contribuições nas redes sociais. É de destacar uma série de vídeos publicados por Andrew Sage no seu canal @Andrewims, que se foca nas mais diversas vertentes práticas do Solarpunk.
Desde o seu aparecimento, o movimento Solarpunk tem vindo a evoluir constantemente, abrangendo não apenas literatura e arte, mas também aplicações no mundo real. Representa cada vez mais um pilar para muitas pessoas que imaginam e trabalham em direção a uma utopia possível.
Desde 2023 existe em Lisboa um grupo informal de Solarpunks que se reúne regularmente para partilhar visões de um mundo Solarpunk.