Texto de Joana Guerra Tadeu

Um filme-poema angustiante: não se aguenta tamanha calma atonal, a monstruosa lentidão da narrativa e a violência dos cortes na música e entre cenas, tal qual acontecem na Natureza. Nunca vi um público tão silencioso à saída do cinema.

Uma parábola ecológica familiar: sentimos o frio da neve e o calor produzido por quem corta lenha com um machado, admiramos os sinais deixados pelos veados e caçamo-los com balas, bebemos a água do rio que poluímos.

O Mal Não Está Aqui – Evil Does Not Exist, é uma lição em ecologia e respeito pelo próximo. O filme, recebido com uma ovação em pé de oito minutos no Festival de Veneza, é realizado por Ryusuke Hamaguchi, validado pelo Óscar de Melhor Filme Internacional em 2022 com o filme Drive My Car.

A obra resulta de uma colaboração com a compositora e intérprete Eiko Ishibashi (que já fizera a música de Drive My Car), a quem atribuo o desassossego da atmosfera de um lugar visivelmente sossegado. Aliás, em entrevista à RTP, o realizador confessou que não tinha grande ligação à Natureza até fazer o filme, que não se sente à vontade para falar de ambientalismo, e que queria apenas harmonizar imagens deste mundo com a música de Eiko Ishibashi.

A Natureza é o ator principal, protagonista dos longos travellings e das sábias descrições de Takumi (Hitoshi Omika), que a vai narrando, primeiro à filha, Hana (Ryo Nishikawa), que ensina a distinguir árvores pela casca vermelha ou preta e alerta para os espinhos de um Ginseng Siberiano; depois ao vizinho, que chegou a Mizubiki há um par de anos para abrir um restaurante com a mulher, a quem mostra o sabor forte do wasabi silvestre; depois a dois funcionários da Playmode, uma agência de talentos de Tóquio que quer construir um campo de glamping na floresta local, a quem explica, paciente e eficazmente, os impactos que o plano terá no abastecimento de água e no ecossistema local.

A narrativa realista enterra-nos fundo, para lá dos típicos conflitos do progresso contra a Natureza, do artificial contra o natural ou da cidade contra o campo; a disputa é connosco mesmos, que reconhecemos tanta familiaridade na vida de quem já habita Mizubiki, como na vida de quem lá chega com a função de implementar um plano do qual dependem os seus salários, pagos por uma empresa para a qual não fazem questão de trabalhar. É com satisfação que assistimos a uma reunião entre os forasteiros e a comunidade local a desmascarar a ignorância dos primeiros sobre a terra dos segundos.

O filme termina sem sabermos se se vai concretizar o destrutivo projeto de desfrute da Natureza pelos turistas urbanos, mas a cena em que Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), os funcionários da Playmode, são respeitosamente dizimados pela comunidade local numa reunião que tencionava não passar de uma formalidade “para inglês ver”, é um excelente retrato do poder dos valores e das ações comunitárias contra os interesses e a ganância corporativa – não imaginava que a discussão sobre a vigilância noturna de um parque de campismo e a localização, capacidade e eficiência de uma fossa séptica pudesse ser um drama tão envolvente.

Esta disputa é baseada numa história verdadeira e faz lembrar as também reais lutas e vitórias da Linha Vermelha contra a prospeção de petróleo na costa alentejana e do movimento Salvar Alagoas Brancas contra a construção de um loteamento comercial sobre a zona húmida local; pode inspirar novo fôlego na luta das populações de Boticas, Covas do Barroso e Montalegre contra as minas de lítio.

Na fatídica reunião, o chefe da aldeia explica que é dever daquela população de seis mil pessoas, que vive junto à nascente do rio, tomar conta da água para que ela chegue às comunidades a jusante com a mesma qualidade que lhes chega a eles; alterar este equilíbrio trará conflitos entre pessoas, e não apenas com a Natureza.

A personagem com quem mais me identifiquei é um jovem de cabelo oxigenado que se irrita, que quer levantar-se e elevar o tom de voz, que os acusa – e com razão, confirmamos depois – de se darem ao luxo de causar um tremendo impacto para aproveitar subsídios de recuperação pós-pandemia que em nada se relacionam com o modelo de negócio da empresa; acaba, sempre, domado pelo aparentemente imperturbável Takumi. Takahashi e Mayazumi evoluem de intrusos urbanos a ansiosos ajudantes da comunidade local, e trazem à luz um lado passivo-agressivo de Takumi, revelado em pequenas ausências de cortesia.

Podemos dividir o filme em três atos: depois do retrato tranquilo da vida quotidiana no mundo rural, uma curta comédia sobre as fantasias de regresso à Natureza de quem vive numa metrópole – ou não fosse o glamping um conceito de mercado para quem tem o desejo de experienciar a Natureza sem nenhum dos desconfortos ou inconveniências de o fazer, um conceito tão evidentemente fútil que apenas o capitalismo tardio poderia tê-lo criado –, seguida de uma curta de terror, plena em pungentes presságios sinistros, que de maneira nenhuma nos preparam para o bizarro e enigmático final.

A edição contundente do som e da imagem tem um efeito implícito de prenúncio. Takumi explica-nos que um veado atacará um humano na eventualidade de estar baleado, assustado e com dores, sem conseguir fugir. A aldeia sob ameaça é essa espécie terna, branda, gentil e adorável. Takumi é o animal que reage às injustiças e cede aos mais inumanos instintos. Como acontece numa avalanche, um turbilhão violento precedido de calma e silêncio, o equilíbrio que segura Takumi colapsa com o desaparecimento de Hana.

O filme não agradará à maioria das pessoas, mas é apresentado com tanta confiança que nos obriga a reconhecer a arte e qualidade do trabalho do cineasta que, na mesma tela, pinta um retrato reconfortante e otimista da humanidade, para depois, amargamente, o desfazer. Talvez seja esse o equilíbrio que Takumi tenta descrever a Takahashi.

Provavelmente, o mal existe, e o título não é um equívoco. O filme confunde as mentes urbanizadas, que teimam em tentar escolher a dedo apenas as partes da Natureza e do Natural que nos convêm. Como se isso fosse possível.

Evil Does Not Exist (2023), de Ryusuke Hamaguchi, com Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani. Japão, M/12, 106 minutos, Drama. Prémios já obtidos: Festival de Veneza 2023 – Grande Prémio do Júri e Prémio FIPRESCI; Asian Film Awards 2024 – Prémio de Melhor Filme; BFI 2023, London Film Festival – Melhor Filme; Asia Pacific Screen Awards 2023 – Grande Prémio do Júri; LEFFEST, Lisbon Film Festival – Selecção Oficial, fora de Competição. Trailer em https://vimeo.com/917619472