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Texto de Luís Fazendeiro
É difícil sobrestimar os perigos da era em que vivemos. Desde o continuado massacre em Gaza, que vem minar toda a retórica de defesa dos direitos humanos das potências ocidentais; à continuada guerra na Ucrânia, que ameaça cada vez mais um confronto direto entre as duas superpotências nucleares (algo que nunca ocorreu ao longo de todo o século XX); ao crescimento da extrema-direita um pouco por todo o mundo, com destaque para os países da OCDE; à indescritível crise ambiental e climática em que estamos mergulhados. Apesar de toda a retórica das instituições internacionais, de mil e uma cimeiras e comunicados repletos de boas intenções, a verdade é que: a desflorestação continua um pouco por todo o mundo, sem fim à vista; a perda de espécies não demonstra qualquer abrandamento e é (pelo menos) comparável às cinco grandes extinções que o planeta já viveu; as emissões de gases com efeitos de estuda (GEE) continuam a aumentar, com o resultado que a meta de não ultrapassar os 1.5°C de aquecimento médio é hoje quase uma impossibilidade teórica e o próprio limite de 2°C poderá, nos próximos anos, vir a ser considerado fora de alcance.
Dezassete anos após o prémio Nobel partilhado por Al Gore e o IPCC, continuamos a falar de uma “verdade inconveniente”: que o atual modelo económico hegemónico está em guerra aberta com o mundo natural e a vida na Terra. Uma década passada após a obra seminal de Naomi Klein (“This Changes Everything”), nove anos depois da Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, pouco ou nada mudou. E seis anos passados desde o começo da Greve Climática Estudantil, iniciada por Greta Thunberg em 2018, o cenário mostra-se cada vez mais negro. As razões para isto poderão ser interminavelmente discutidas, mas algumas tendências são agora perfeitamente claras:
i) o processo de negociações internacionais para reduzir as emissões de GEE, no contexto das Nações Unidas, falhou por completo e foi cooptado pela indústria fóssil de forma profunda e talvez irreversível. Basta apontar as duas últimas conferências, no Egito e nos Emirados Árabes Unidos, e a próxima, a ter lugar no Azerbaijão, três países na lista dos maiores produtores mundiais de gás fóssil e com regimes altamente autoritários;
ii) os protestos mais radicais (como bloqueios de grandes vias rodoviárias, ataques a figuras políticas, atirar tinta a quadros) não estão a trazer pessoas novas para a causa e correm o sério risco de aumentar a alienação de largas fatias do público, caindo assim na armadilha da polarização e clivagem crescentes, que tem vindo a ser potenciada pelas redes sociais ao longo da última década – e que ameaça conduzir a extrema-direita ao poder num número cada vez maior de países;
iii) é hoje perfeitamente possível ignorar a crise ambiental em curso, bem como qualquer outra, e construir comunidades, sobretudo online, em que todo o tipo de crenças podem prosperar. Esta situação, que já existia antes da massificação da internet e do uso das redes sociais, atingiu agora um novo patamar, em que os cultos mais bizarros atraem milhões de pessoas: desde o furor negacionista anti-vacinas, à ideia de que o mundo é governado por homens-lagartos, ao reviver da fantasia de uma Terra plana. O poder de inventar narrativas (e mesmo “factos”) alternativas e de tornar vastas camadas da população incapazes de sequer identificar os problemas do nosso tempo, é hoje de tal modo vasto e abrangente, que dificilmente se poderá encontrar um paralelo histórico. É a própria noção de verdade, e de existência de uma realidade objetiva, que está hoje sob ameaça.
Em relação a este último ponto, se os exemplos aqui citados poderão parecer extremos, talvez sejam apenas casos-limite de uma tendência que é bastante mais profunda e transversal. Os historiadores do futuro, assumindo que os venha a haver, poderão, ao olhar para a presente era, ter dificuldade em distinguir entre coisas que hoje nos parecem diametralmente opostas. Mais concretamente, pode-se argumentar que a crença no poder curativo da inovação tecnológica e nos mercados¹ poderá ser tão irracional, e talvez mais prejudicial, quando comparada com a magnitude dos desafios que enfrentamos, como a ideia de que o mundo seja governado por homens-lagartos.
¹ Luís Fazendeiro, “Sobre a Mudança: Justiça climática e transição ecológica no século XXI”. Editora Outro Modo, Lisboa, 2023
E se, por exemplo, um partido de esquerda sinaliza (corretamente) a crise climática como um dos dois ou três principais desafios do nosso tempo e alguns anos mais tarde lhe dá um grau de prioridade muito mais reduzido, não será também essa uma forma de negacionismo, por muito matizado que seja? O tacticismo eleitoralista pode justificar muita coisa, se o objectivo a curto prazo for o de ganhar eleições, ou aumentar o número de votos. Não podemos é depois queixar-nos se largas porções da população abandonarem esta causa, ou mesmo reagirem abertamente contra ela.
Citando mais uma vez Klein, é hoje cada vez mais claro que largas porções das forças políticas de esquerda nunca compreenderam realmente o “poder revolucionário das alterações climáticas” e de como esta problemática literalmente “muda tudo”! Neste contexto, não basta continuar a militar por uma melhoria das condições de vida das classes mais desfavorecidas, ou por pequenas alterações cosméticas no tecido socioeconómico: é urgente repensar toda a actividade económica moderna, quer ao nível dos métodos quer das metas.
O que levanta a questão, haverá algum conceito de ecologia na extrema-direita?
Existe uma vasta tradição de ecologia nas franjas mais radicais da ideologia de extrema-direita. Um excelente apanhado pode ser encontrado na obra de Hillary A. Moore, que analisa vários exemplos recentes de forças políticas europeias de matriz autoritária e a forma como instrumentalizam problemáticas de cariz ecológico². Importa salientar que muitas das primeiras políticas de conservação e proteção ambiental tiveram muitas vezes a sua origem em impulsos autoritários, xenófobos e racistas. Desde a criação de parques naturais, de onde as massas pudessem ser excluídas, às (falsas) equivalências entre o combate à poluição e a necessidade de promover a “pureza” racial.
² Hillary A. Moore, “Burning Earth, Changing Europe: How the racist right exploits the climate crisis and what we can do about it”. Rosa-Luxemburg-Stiftung, Brussels, 2020.
Trata-se aqui de tropos venenosos e enganadores que muitas vezes jogam com as similaridades entre palavras para criar imagens que de alguma forma apelam a instintos primordiais violentos e discriminatórios, sobretudo nas eras de maior desorientação e crise social. Da mesma forma que existe toda uma vasta história da ciência moderna em que noções como a “raça” e a eugenia proliferaram e foram com frequência integradas na corrente principal do pensamento dito científico, sobrevivendo até pelo menos aos meados do século passado. Com demasiada frequência, não houve uma crítica e uma desconstrução suficientemente fortes destes conceitos: o que de algum modo possibilita o seu regresso, passadas algumas gerações, ao centro do discurso público, como vemos suceder hoje com demasiada impunidade.
Alguns exemplos poderão ajudar a ilustrar o que se discute aqui, retirados do trabalho de Moore, atrás citado. Temos assim o conceito de “etno-nacionalismo”, que prioriza a existência do Estado-nação, mas ligando o mesmo à existência de uma determinada etnicidade, que deve ser protegida a todo o custo. Neste caso incentiva-se ainda uma conexão entre a pertença a uma dada nacionalidade com a manutenção de determinados caracteres culturais, quase sempre vistos como imutáveis, à total revelia do que sempre foi o desenvolvimento histórico dos povos de todo o mundo. O próprio “anti-globalismo” é um conceito de alcance inestimável que, ao colocar na mesma categoria todos os acordos e instituições internacionais, abre o caminho para o nacionalismo mais bacoco, condenando pela mesma bitola tanto os excessos predatórios de Wall Street ou o militarismo da NATO, como os tratados que visam proteger a biodiversidade ou as associações de apoio humanitário.
Outro conceito que também é aqui relevante é o “neo-maltusianismo” que, partindo de uma leitura demasiado estreita do autor inglês dos séculos XVIII e XIX, associa o aumento populacional e a exaustão de recursos naturais de forma directa. Desta forma, coloca-se a ênfase numa “desejável” redução da população – em vez de nos padrões de consumo dos mais ricos, que são desproporcionalmente responsáveis pela actual crise ambiental.
Por agora, o desenrolar da crise climática tem todo o potencial para beneficiar o crescimento da extrema-direita, pelo menos nos países da OCDE. À medida que os fluxos migratórios, cuja causa principal são já as alterações climáticas, se intensificam, será cada vez mais fácil jogar com o sentimento de desconforto das populações e aumentar os muros da “fortaleza Europa”, América do Norte, Japão ou Austrália, entre outros. À medida que as condições de vida se deterioram, o apelo a um passado mítico, de maior abundância, será cada vez mais difícil de resistir. Quanto às catástrofes ambientais no Sul global e consequente perda de vidas, como Amitav Ghosh argumentou de forma convincente³, isso só será (e está a ser) visto pelas potências dominantes como um bónus, num mundo considerado sobrepovoado, e em que os países com maior crescimento populacional são, em grande medida, os que mais riscos imediatos correm com a disrupção do clima. Pode-se mesmo falar numa espécie de genocídio por negligência em curso (devido à incapacidade de agir em relação a, de prestar socorro).
³ Amitav Ghosh, “The Great Derangement: Climate change and the unthinkable”. University of Chicago Press, 2016.
O que poderá mudar drasticamente este cálculo será um reconhecimento geral por parte das elites económicas de que um determinado grau de aquecimento possa significar uma ameaça existencial aos seus interesses diretos. Atualmente, os “mercados” parecem apostar em que um aquecimento médio global de 3°C é perfeitamente aceitável (do seu ponto de vista); e que os pontos críticos do sistema climático ou não serão atingidos (por exemplo: transição da Amazónia para um ecossistema de savana, ausência de gelo no Pólo Norte durante o Verão, colapso generalizado da Grande Barreira de Coral, enfraquecimento significativo da circulação oceânica do Atlântico Norte, etc.), ou não terão nenhum impacto significativo. Isto pode comprovar-se pelas actuais políticas em curso, quer a nível nacional quer ao nível das maiores empresas mundiais. Ora, se essas mesmas elites chegarem à conclusão de que o valor de 3°C é incomportável para os seus interesses, ou até que as políticas em curso já não são suficientes para não o ultrapassar, aí poderemos assistir a uma mudança radical de orientação.
É neste contexto que soluções tecnocráticas muito impactantes, como a implementação em larga escala de mais energia (de fissão) nuclear e a geoengenharia, que já são hoje as opções favoritas das elites que se reúnem regularmente em Davos e em fóruns semelhantes, poderão entrar em jogo. Estas são de tal forma impopulares e contrárias aos interesses da maioria das pessoas e da vida na Terra, que só no âmbito de regimes altamente autoritários e opressivos poderão ser implementadas. (E se é verdade que já houve uma era de enorme expansão da energia nuclear, isso aconteceu apenas num número relativamente restrito de países, e quando a perceção dos riscos dessa tecnologia era muito diferente da atual.)
Outra opção seria a captura e sequestro de carbono (CCS, na sigla inglesa) em larga escala, nas centrais termoelétricas e nas maiores unidades de produção industrial. Isto teria a vantagem, do ponto de vista do capitalismo fóssil, de manter intacto o actual modelo de extração de combustíveis fósseis, enquanto significaria, eventualmente, uma redução nas emissões de GEE. Os investimentos necessários para esse cenário seriam de tal ordem que apenas os Governos dos países mais ricos teriam a capacidade de financiaressa infraestrutura. Mas, a partir do momento que o escrutínio democrático fosse abolido de vez, nada impediria que os recursos públicos fossem desbaratados dessa forma.
Se tudo isto parece distópico, urge sublinhar que não é inevitável. Há uma enorme diferença entre um cenário altamente provável – e uma inevitabilidade. Tudo o que atrás foi descrito resulta de opções políticas e pode ainda ser travado por outras opções políticas, muito diferentes das primeiras. Para isso é imperioso que todas as forças políticas e variadas organizações da sociedade civil, que se considerem democráticas e progressistas, herdeiras da tradição política humanista dos últimos séculos, reconheçam a realidade que a ciência hoje descreve – e declarem um estado de emergência climática.
Depois, que tenham a coragem (e a humildade) de explicar ao resto da população que esta situação implica um completo redesenhar do modelo socioeconómico vigente. Que vão contra os interesses económicos estabelecidos e que saibam sacudir as grilhetas ideológicas neoliberais, mas também a visão estreita de muito pensamento de esquerda que, embora nominalmente inspirado no marxismo, adota uma visão de produtivismo a todo o custo que o próprio Marx não teria subscrito. Ambas considerando os recursos naturais como literalmente inesgotáveis, ou facilmente substituíveis. E, finalmente, que insistam numa visão transformativa da sociedade, de matriz ecossocialista, e não ignorem as imposições que a realidade objetiva nos coloca – ainda que isso possa ir contra muitos dos desejos e aspirações artificialmente construídos pela sociedade de consumo nas últimas décadas.
A alternativa a isto será o fascismo. Com ou sem eco.