«Se os trabalhadores não tomam a dianteira com outro tipo de propostas, o campo para o negacionismo será muito maior».

Entrevista a João Reis, trabalhador e sindicalista da Autoeuropa

Dirigente do STASA e membro da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa, João Reis fala à revista Ebulição sobre a indústria automóvel e o seu futuro. Entre os desafios de uma transição justa liderada pelos trabalhadores e a ameaça de uma falsa transição justa com perdas reais para os trabalhadores, o sindicalista aponta os atrasos da indústria automóvel e um futuro possível para a transformação da indústria.

Qual é o contexto atual das lutas sindicais da Autoeuropa? Quais são neste momento os grandes focos de tensão? Quais foram as grandes vitórias, grandes derrotas dos últimos anos?

A Autoeuropa desde 2017 que tem uma transição muito significativa para um tipo de de produção em larga escala. Ou seja, a Autoeuropa produzia até 2017 carros de nicho de mercado, ou seja, modelos que eram para nicho de mercado e a partir desse ano passa com o modelo de laboração mais intensiva, a produzir carros para um mercado muito superior. Com tudo o que isso acarreta, desde logo de procurar uma exploração mais intensiva da mão-de-obra e foi isso que aconteceu aquando da guerra que travámos contra o trabalho regular ao fim-de-semana que até 2017 não era uma realidade na fábrica. Este clima de mudanças na fábrica e os seus impactos entre os trabalhadores mantiveram-se, depois de ultrapassarmos esta fase – uma batalha que no seu essencial foi perdida. Apesar dos trabalhadores se terem envolvido bastante, de ter dado origem a uma greve, ter dado origem a processos de reorganização dos trabalhadores, ou seja, a experiência com as organizações sindicais existentes à altura, nomeadamente o sindicato de que eu faço parte, o STASA, que surge desse processo de experiência com os sindicatos afetos à CGTP e à UGT que à época, no quadro da geringonça, optaram por não dar muito alardo a esta guerra.

E qual foi o impacto concreto dessa luta para os trabalhadores?

Nós vivemos numa fábrica, a partir de 2017, totalmente diferente da fábrica liderada por António Chora, do ponto-de-vista dos trabalhadores, muito mais amorfa nesses tempos, muito menos reivindicativa, muito menos combativa se quisermos e passamos para uma outra fábrica em que de facto há mais contestação, até como reação há intensidade maior da exploração da mão-de-obra com esta questão do trabalho ao fim-de-semana, mas também com o aumento das cargas constantes de trabalho com os ritmos de trabalho que aumentam constantemente. Eu entrei para a Comissão de Trabalhadores em 2020, nessa época produzíamos diariamente 864 carros e hoje em dia estamos a produzir teoricamente 934 (sendo Teoricamente porque, na prática, estes valores ultrapassam , em média, em cerca de 30 veículos, além daquilo que são as metas teóricas da empresa). Portanto, estamos quase daqui a pouco a chegar aos 1000 carros diários e, portanto, isto serve é demonstrativo do que tem alterado na realidade da empresa.

Por falar nesse aumento da produção, a questão climática tem vindo, pouco a pouco, a ser posta em cima da mesa e colocado pressão sobre a indústria. Como é que isso acontece na Autoeuropa? Nós ela tem ganho peso e colocado pressão sobre a indústria em Portugal. E como é que essa pressão é sentido em concreto na Autoeuropa e no e no seu trabalho?

Na Autoeuropa nós produzimos ainda veículos exclusivamente a combustão, portanto a realidade do elétrico ainda não é uma realidade atual, embora o tema ambiental se note de outras formas. Por exemplo, nós temos um prémio de objetivos anual, que estabelece no início de cada ano alguns critérios de qualidade, de horas por unidade produzida, de volume de produção e um deles, que foi introduzido a partir de 2018 ou 2019, é o de ambiente no qual existem metas de redução das emissões, de consumo de água, eletricidade, energia no geral. E, portanto, desde aí que já se nota algum impacto, mas ainda há um impacto residual neste momento.

E a nível do produto final?

Nós estamos a mudar para um modelo híbrido, portanto já há aqui algum impacto ao nível da produção. Mas a realidade do elétrico virá apenas possivelmente em 2027, portanto ainda é uma realidade que não é para já. O próximo modelo que iremos produzir, e que vamos iniciar em 2025, é um modelo híbrido e, portanto, a realidade do elétrico será um pouco mais para a frente.

Mas todas essas ideias de metas são muito abstratas, não? Não há planos concretos de mudança que não sejam do produto em si, nos processos de produção, por exemplo? Há alguma mudança concreta para além da questão dos prémios e dos objectivos?

Em toda a realidade do setor automóvel é isso que nós observamos e é por isso que nós falamos de uma falsa transição energética. Na verdade, todos os processos de alteração produtiva, tanto o que eu falei, que não alterou do ponto-de-vista da matriz energética do produto, tanto estas questões que falava agora dos critérios de ambiente para aferir prémios de objetivos anuais ou, por exemplo, os argumentos de pressão usados em processos de negociação, como aquele que estamos a viver atualmente na Autoeuropa, fazem com que a realidade do elétrico, na verdade, ela na maior parte das vezes consiste em redução de mão-de-obra, aumento da intensividade do trabalho, aumento dos ritmos de trabalho, aumento da automação. Ou seja, cada alteração produtiva dentro da empresa tem significado isto mesmo que falei: fazer mais carros com menos trabalhadores.

Ao que te referes quando dizes que os argumentos climáticos são usados em processo de negociação?

Vocès acompanharam com certeza aquilo que foi o apertar de regras de emissão de gases com o Euro 7 recentemente. São as normas europeias que levam a coimas para as fábricas. Na verdade, não evita que se produzam produtos que atentam contra o ambiente, mas fazem com que as empresas paguem e aumenta o valor do produto final. Isso tem sido usado como pressão para os trabalhadores aceitarem, em processos de negociação, condições mais “competitivas” – na linguagem da empresa – e, portanto, mais lucrativas na ótica do patrão. Ameaçando, dizendo que nós temos que nos demonstrar o mais lucrativos possível para sermos o destino de um de um próximo modelo elétrico dentro do grupo.

Porque é que o lucro importa no destino desse modelo elétrico?

Porque nós, dentro dos grupos do setor automóvel, assistimos a uma semi-concorrência entre as fábricas para competir por modelos futuros. Contra nós tem sido usado o facto de nós não termos o elétrico. O facto de isso ser um destino 100% certo do setor automóvel. Como ameaça da empresa, nós produzirmos os veículos exclusivamente a combustão não dá estabilidade à existência da fábrica e dos seus postos de trabalho. Houve um momento em que se discutiu no quadro do Parlamento Europeu e no Quadro Comissão Europeia, a antecipação da entrada em vigor do Euro 7. E na época, isso significava que cerca de 80% dos veículos da Autoeuropa não estariam enquadrados nessa norma e, portanto, significaria um incremento de custo supostamente para a empresa. E isso é usado como forma de pressão aos trabalhadores a aceitarem as piores condições de trabalho para se demonstrarem o mais lucrativo possível para termos rapidamente um veículo elétrico.

E quais têm sido as posições das organizações de trabalhadores na Autoeuropa face à questão da transição energética, em particular condicionada por tudo isto?

Temos tomado uma posição genérica. Há, em todos os processos de negociação – nomeadamente aquele em que estamos agora – a posição de não aceitar qualquer tipo de chantagem, seja ela com um argumento da questão climática, seja ela qual for. Temos conseguido manter uma posição a esse nível, às vezes relativamente conflituosa entre as próprias organizações representativas de trabalhadores. Mas temos conseguido manter uma intransigência em aceitar esse tipo de chantagem para piorar as condições de trabalho na empresa. Contudo, o tema climático ainda é um tema muito verde dentro do movimento sindical, ou seja, está muito pouco desenvolvido. Nós temos uma discussão dentro do STASA, de que há necessidade de levar este tema aos trabalhadores o quanto antes, porque normalmente os trabalhadores são tomados por realidades e reagem, em vez de se prepararem e procurarem conduzir ou influenciar a condução desses processos antes deles nos aparecerem como realidade.

Como é que isso se faz?

Nós, no setor automóvel, vemos isso como uma necessidade de começar desde logo a discutir essa temática entre os trabalhadores e consideramos que qualquer transição justa, por mais ambientalmente sustentável que ela seja em abstrato, não pode ser conduzida contra os trabalhadores. Tem de ser conduzida com os trabalhadores, colocando soluções para postos de trabalho, eventualmente colocando soluções para reconversões profissionais e, portanto, nunca contra os trabalhadores, com redução de postos de trabalho ou com redução de direitos.

Não é um risco que este uso cínico por parte dos patrões da questão ambiental e climática está a gerar ou pode gerar uma consciência mais negacionista em setores dos trabalhadores?

Assistindo àquilo que tem sido o crescimento da extrema-direita com todas as suas vertentes, nomeadamente no caso do ambiente, do negacionismo, isso tem tido campo e tem tido espaço político entre os trabalhadores do setor. Mas, eu acho que isso tem dois motivos. Porque o tema tem sido usado de forma utilitarista por parte da da patronal, por um lado. E por outro porque, do ponto de vista da produção em si e da sua cadeia – porque nós não estamos a falar de uma fábrica Autoeuropa que monta aqui os veículos, estamos a falar de uma cadeia de produção que vem de várias partes do globo – existe um questionamento se esta é uma solução do ponto de vista ambiental mais sustentável. Porque estamos a falar de matérias-primas das quais não existe capacidade de extração e de sustentar todo o planeta Terra com baterias de lítio para carros elétricos. Existem aqui vários condimentos para que os trabalhadores assumam uma postura negacionista, sim. E por isso nós [STASA] achamos que este tema tem de começar a ser discutido entre os trabalhadores, porque de facto é uma preocupação dos trabalhadores.

Como é que se contraria isso?

Se os trabalhadores não tomam dianteira com outro tipo de propostas, o campo para o negacionismo será muito maior. Principalmente porque são os direitos e os postos de trabalho das pessoas que estão em jogo. E se elas não vêem uma solução para as suas vidas, no quadro de uma indústria mais sustentável, entre as contas ao final do mês para pagar e algo que de facto existe, é um problema, mas que na realidade que nós vivemos em Portugal não é tão presente, eventualmente, como em outras partes do mundo, os trabalhadores são obrigados a escolher entre aquilo que lhes é mais premente, que é o salário e as suas condições de trabalho e, portanto, há aqui uma urgência de construir entre os trabalhadores um programa que atenda também a essa realidade. Não só dos direitos sociais, dos direitos laborais, mas também uma solução para uma indústria mais sustentável.

Como é que vês um futuro sustentável para a Autoeuropa em particular, mas para a indústria automóvel em Portugal, na Europa, no mundo?

Não existe até o momento nenhuma solução, do ponto de vista técnico-científico, para os veículos que não tenha impacto no ambiente. Tanto que do ponto de vista da realidade do elétrico, ela ainda é uma incerteza, ou seja, ela ainda é um ponto de interrogação. Há outras soluções que estão a ser procuradas neste contexto, nomeadamente o combustível sintético, o hidrogénio, há outras soluções técnicas. Nenhuma delas sem impacto para o ambiente. A solução passará mais por um outro tipo de indústria automóvel que alimenta um outro tipo de mobilidade que não passe pelo carro individual. Se tiver uma rede de transportes coletivos, que me consiga levar ao meu destino, que tenha oferta diária em vários horários e que consiga atender às necessidades da população… Portanto, esta questão da mobilidade individual não é sequer uma realidade sustentável do ponto de vista racional. Não existe racionalidade neste tipo de produção, apenas uma que é: um setor automóvel que obviamente está voltado para a extração de mais e mais lucro para estes grandes grupos económicos.

Vês a necessidade de um movimento operário que não se limite a posições defensivas nas melhores condições possíveis dentro do quadro que o sistema nos oferece, mas que possa ser portador não só de melhores condições dentro deste quadro, mas de uma alteração de quadro de produção e de organização social? Temos exemplos disso?

Ainda estamos numa realidade de introdução desta transição para o elétrico ainda muito cheia de dúvidas e de incertezas. E é pouco explícita nos seus impactos e na dimensão dos seus impactos. E, de facto, talvez por aí nós não tenhamos ainda visto um movimento operário a reagir à altura do problema. Nós de facto temos muito poucos exemplos. Ou se quiserem, não temos nenhum. Tem havido algumas experiências de construção de uma resposta ou de antecipar uma resposta da parte dos trabalhadores que passa pela questão da redução da jornada de trabalho e sem redução de salário para as trinta horas, face as possíveis reduções de postos de trabalho. Ou seja, ainda não há propriamente um programa dos trabalhadores para esta transição. Achamos, no entanto, que este tema não tem uma solução técnica e tem muito mais que ver com o modelo de produção e da intensividade da procura do lucro neste mundo capitalista neoliberal. E, portanto, uma alternativa sustentável para a indústria automóvel passará necessariamente por questionar este modelo capitalista. E pela proposta de o substituir por outro que, ao invés do lucro, atenda às necessidades da maioria da população.

Entrevista feita por Daniel Borges e Manuel Afonso.