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Texto de Joana Bértholo e ilustrações de Maria Lis
Arquimedes de Siracusa (287 a 212 a.C.) foi cientista, engenheiro, matemático, astrónomo, físico e inventor. Entre outras máquinas e engenhocas, inventou uma espiral para elevar água, alavancas, e diferentes máquinas de guerra. Atribui-se-lhe a invenção de uma Máquina de Fazer Nada, mais conhecida por Trama de Arquimedes.
Inspiradas por esta profusão de mecanismos, e saturadas das Máquinas de Gerar Insólitas Necessidades que o mundo actual oferece, Joana Bértholo (texto) e Maria Lis (desenho) dedicam-se a pensar em Máquinas que honrem o inútil, o impertinente, o contraditório, o desvio e a deriva. Longe do rigor do génio clássico e do exercício virtuoso da racionalidade, estas Máquinas evocam o irracional: anseios e instintos, e até o medo da própria Máquina.
O Futuro será então um lugar onde aguardarão por nós os detritos de tudo o que alguma vez consumimos. Nele, acumular-se-ão os despojos de cada um dos nossos gestos, o resultado das nossas tarefas, os restos das nossas refeições. Cada saquinho, cada pacotinho, cada bilhetinho. Cada tampa, cada invólucro, todo e qualquer sistema de abertura fácil. Estes desperdícios estarão empilhados como grossas paredes com a altura de vários homens. Essas paredes formarão longos corredores de desenho circular.
Quando chegarmos ao Futuro seremos relembrados das escórias da nossa existência material: cada folha de papel higiénico, cada cotonete, cada copo plástico de cerveja; 17 telemóveis inutilizados — cinco dos quais por terem caído na sanita —; embalagens vazias, milhares e milhares; atacadores, palhinhas, pauzinhos, colherinhas, merdinhas; malgas de uso único; cigarreiras, isqueiros e esferográficas; cartuchos de impressora vazios; um sem acabar de cartões — de identidade, de afiliação, de fidelização a marcas e lojas —; cosméticos, caixas de medicamentos, embalagens de CDs e DVDs, centenas de tubos de pasta dentífrica; um par de havaianas esquecidas na praia; a carcaça de um Volkswagen Polo e de um Peugeot 208; móveis, brinquedos, electrodomésticos, vários colchões de solteiro e quatro de casal, vários sofás, uma profusão de almofadas, centenas de lâmpadas, uma piscina insuflável, dezenas de chapéus de sol, resmas de papel, folhetos publicitários não solicitados, embrulhos de Natal, revistas; toneladas de tecido, um casaco comprido que foi usado uma única vez, uma parede inteira de roupa que não foi usada mais de 10 vezes. Há quem encontre 329 preservativos, há quem encontre 5922 pensos higiénicos. Os livros que lemos uma vez e enterramos para sempre numa estante, junto aos que nunca lemos. O Futuro será diferente para cada um de nós, mas para todos e todas será o resultado de cada gesto e decisão tomada no Passado e no Presente.
Mas não se esgotaram nesta descrição as possibilidades do Futuro: mencione-se o longo corredor com paredes erigidas por fraldas usadas, seguido de outro dedicado às garrafas de água e de refrigerante. Na única alameda com arcadas, a colunata será composta por caixas de piza e de take-away empilhadas. Restos de fio-dental tecidos formarão uma tapeçaria que nos protegerá do sol nos dias quentes. Ao centro, um lago fétido com os efluentes da nossa existência: toda a água com que nos banhamos, do poliban à piscina, misturada com os restos de coca-cola, café e gin que fomos deixando no fundinho de milhares e milhares de copos.
Para muitos, incluirá também uma sorte de resíduos imateriais, resultado de se tratarem pessoas, relações, afectos e experiências como Bens de Consumo. Em casos mais raros, até formas de fé, de espiritualidade, e ideologias. Tudo isso servirá de cola e fortalecerá as espessas paredes do labirinto: as pessoas, os encontros, as memórias que afinal consumimos.
Esta Máquina de nos encerrar sob as nossas próprias decisões será aquilo a que chamaremos, uma vez perdidos no dédalo, de Futuro. E não haverá forma de sair dele.
Uma mulher atravessa a rua pela passadeira. Está verde para os peões, o que condiz com os seus sapatos e os seus olhos. Leva o olhar caído no chão e a mão pousada na alça esquerda da mochila. Caminha com passos pequenos e pensa na criança que carrega dentro, de quem não quis saber o sexo e para a qual não escolheu ainda um nome. Pensa numa fotografia que encontrou essa manhã num álbum de família. Era um retrato da sua avó enquanto jovem, um pouco mais nova do que ela naquele momento. Na imagem, essa jovem que viria a ser a sua avó está grávida de cinco meses da sua mãe. O feto que não é visível, mas está presente no retrato, conteria nele a célula precursora do óvulo por fertilizar do qual se desenvolveria a própria mulher que agora atravessa a passadeira, e talvez nessa célula — não sabe dizer como — poderia existir uma primeira impressão do bebé que agora atravessa a passadeira dentro dela.
Se assim fosse, ou assim sendo, na fotografia a preto e branco que encontrou essa manhã no álbum já estaria retratada esta filha, ou este filho, que a mulher ainda não conhece, num instante de tempo em que quatro gerações conviveram no mesmo corpo. A mulher pergunta-se como funciona esta Máquina.
Chega ao lado oposto da rua. O semáforo cai para vermelho, verde para os carros, que arrancam e aceleram com alarido, deixando para trás uma parede de fumo de escape e milhentas outras impurezas invisíveis que a mulher inspira e com que enche os pulmões, quase simultaneamente partilhando-os com o feto que carrega. Impurezas tão imperceptíveis quanto o elo que vincula cada geração às anteriores e às seguintes.
O termo Protopia foi cunhado por Kevin Kelly, editor da revista @wired, para com ele pensarmos em futuros resultantes de melhorias constantes e contínuas, e assentes no esforço pessoal e comunitário. Em contraste ao imediatismo plano da Utopia e da Distopia, que tendem ao absoluto e ao imutável, a Protopia pede de nós um progresso passo a passo, diário, feito de melhorias incrementais.
A Máquina de Gerar Protopias é bem pequenina, quase uma nano-Máquina. Enfia-se assim no tecido do tempo, desdobrando-o. Quando observada ao microscópio, a sua estrutura é incrivelmente semelhante à de uma impressora caseira, com uma reconhecível bandeja de alimentação onde podem ser depositadas as mais visionárias Utopias. Estas são, como sabemos, totalmente planas. Uma espécie de folha em branco onde não é possível inscrever mais nada, porque mudar é também e a algum nível degenerar.
O que a Máquina de Gerar Protopias faz é insuflar e multiplicar a superfície plana, dando-lhe espessura, profundidade, e tempo. Garante assim que a Utopia tenha uma distância a si própria, a distância crítica; e salvaguarda espaço para a mudança, para a errância, e para a aprendizagem. A Máquina garante que a Protopia mantém a esperança e as valências positivas que caracterizam a Utopia, tornando-a concreta e praticável. Dá-lhe alcance.
Curiosamente, se na bandeja de alimentação onde é suposto inserir uma Utopia for inserida uma lâmina de Distopia, o resultado espesso, viscoso e cheio de contradições, assemelha-se em tudo ao mundo em que vivemos actualmente.