Editorial da revista Ebulição #2
«Para o júbilo, o planeta está imaturo / é preciso arrancar alegria ao futuro»
Vladimir Maiakovski, em A Serguei Iessienin.
De há quase um século, os versos do poeta e revolucionário russo nos contemplam. A sua esperança desesperada era a de um tempo comprimido em que, rapidamente, as esperanças da grande revolução deram lugar a um país ferido pela guerra, ameaçado pelo colapso, a caminho de um fechamento autoritário. A alegria não tinha lugar naquele presente: «primeiro é preciso transformar a vida», assinala outro verso. A alegria tinha de ser arrancada a esse por vir, possível, mas não garantido – só poderia nascer da luta; e esta, das dificuldades. É a esse campo de possibilidades em aberto, imaginadas e em construção, a que se dedica este número da Ebulição. Falamos de futuros, no plural.
Atravessamos tempos de policrises: a guerra, as desigualdades, a ameaça autoritária da extrema-direita. A crise climática – provavelmente a expressão mais perversa de uma crise ecológica de escala planetária – agudiza e acelera todas as anteriores. Esta crise do capitalismo fóssil, alimentada pela queima incessante de combustíveis fósseis e pela extração voraz de recursos naturais, está a conduzir o planeta – ainda que a velocidades assimétricas – rumo a pontos de não retorno, precipitando futuros incertos. Os artigos sobre ecossocialismo e ecofascismo publicados nesta edição apresentam dois pólos opostos desse futuro em disputa.
A luta contra as alterações climáticas dá-se contra o relógio. Não pode ser deixada às gerações futuras, até porque essas gerações, na verdade, já habitam este presente em ebulição. A urgência de «transformar a vida» nunca foi tão grande e a dimensão da empreitada pode tolher ou desesperar. Pretendemos contrariar esta paralisia e apelar à ação coletiva por futuros democráticos, ecológicos e socialmente justos. Os movimentos climáticos não se devem pautar por metas artificiais de neutralidade carbónica – alheias aos ritmos da crise climática e às vontades dos povos -, mas sim propor e ensaiar projetos de futuro ancorados em perspetivas de emancipação coletiva. Porque corremos contra o tempo, só novas formas de organização social, da produção e reprodução da economia e das esferas básicas da vida podem atenuar a crise climática e adaptar a existência coletiva à era da ebulição que é já presente. No fundo, trata-se de reafirmar que a luta por justiça climática tem de responder às metas frias da ciência climática, mas só pode vingar politicamente como projeto ecossocial se disputar o futuro e se empenhar na redefinição dos limites do possível.
No Portugal que comemora os 50 anos da revolução e da conquista da liberdade e da democracia, urge disputar este futuro. A escalada da extrema direita nas eleições legislativas de 10 de março reflete a aposta das elites económicas que se negam a projetar um futuro que vá além do lucro imediato, atropelando assim a democracia e o planeta. Esta viragem à extrema-direita encontra eco no desespero de muitos e alimenta retrotupias perigosas – saudosismos de um passado glorioso que, na verdade, nunca existiu. Há, realmente, quem queira acaudilhar o povo de regresso ao passado.
Menos audível, mas igualmente perigosa, é a nova fase da governação nacional. Se os governos passados ficaram muito aquém da ambição necessária em matéria de ação climática, o atual dá sinais de retrocesso. A sua sanha privatista e neoliberal evidencia isso mesmo. A política das contas certas, imposta pela União Europeia e elevada a virtude máxima também pelos governos do PS, não só vai continuar, como se fará acompanhar por uma descida de impostos para as grandes empresas – algumas delas, grandes poluidoras. Como percebemos num dos artigos deste número da Ebulição, a obsessão com os valores do défice e da dívida impede os níveis de investimento público que uma ação climática eficaz exige. Além disso, a direita dá sinais de querer acelerar o extrativismo verde, que engole algumas localidades do país e impede qualquer transição energética socialmente justa.
Já o acentuar da desregulamentação do Alojamento Local não acirra apenas a crise da habitação, impedindo que milhares de pessoas tenham acesso a habitação digna e se protejam dos fenómenos climáticos extremos crescentes, como aprofunda uma política de turistificação da economia, totalmente dependente do aumento do tráfego aéreo e marítimo e, consequentemente, das emissões de gases com efeito de estufa. Verifica-se a mesma tendência nas plataformas digitais, que o governo parece querer reforçar, socavando as possibilidades de uma política de transportes públicos – um pilar crucial de qualquer transição socioecológica justa para as classes populares. No setor da energia, a Galp acaba de anunciar novas explorações de petróleo na Namíbia, acentuando a sua vocação neocolonial e ecocida. Nada disto é contraditório com a persecução das políticas, tão acarinhadas pelos governos anteriores do PS, que mascaram de «verde» projetos insustentáveis, desde a mineração de lítio à instalação de projetos de energias renováveis ultracentralizados.
O futuro pelo qual temos de lutar vai no sentido inverso: afirma a necessidade de uma planificação ecológica democrática, acompanhada de investimento público em transportes coletivos eletrificados, nas energias renováveis descentralizadas e na reabilitação e renovação energética dos edifícios; afirma a necessidade de criar empregos para o clima, de reconverter os setores assentes em combustíveis fósseis, defendendo sempre os direitos de quem neles trabalha e trabalhou, e de implementar uma política industrial ecológica.
Este futuro não nascerá da boa vontade do novo governo, muito menos das forças liberais e de extrema-direita cada vez mais empoderadas. Mais do que nunca, a causa da justiça climática terá de avançar no terreno da disputa social e política, não fechada sobre si mesma, mas com o respaldo democrático da mobilização popular e construindo pontes com outras lutas e protagonistas. Só assim será possível arrancar um planeta – e um país – ao futuro.