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Texto de Ricardo Vicente
São muitos os impactos previsíveis das alterações climáticas sobre os ecossistemas agrários e a sua capacidade de produção de alimentos e de sustento alimentar das populações. Vários estudos apontam para perdas de produção de 30% das produções globais das culturas agrícolas e, simultaneamente, para uma necessidade de aumentar em 50% a produção de alimentos até 2050 de forma a responder ao crescimento da população mundial. Este aperto entre o crescimento da procura e a perda de produtividade das culturas terá múltiplas consequências negativas para os ecossistemas e para as sociedades. Para agravar a situação, prevê-se também uma considerável perda da riqueza nutricional de muitos alimentos frescos.
As alterações climáticas vão alterar os padrões globais de produção de alimentos com efeitos mais negativos nas latitudes mais baixas, onde são esperadas maiores reduções de produtividade. Em algumas regiões nas latitudes mais altas podem ocorrer acréscimos de produtividade consequentes das subidas da temperatura média e da concentração de CO2 na atmosfera, mas os ganhos ficarão sempre muito longe de compensar as perdas.
Com a descida dos níveis de produção e o aumento da procura, os agricultores tenderão a procurar restabelecer ou aumentar as suas produções e para tal só existem duas hipóteses: 1. aumentar a área de cultivo ocupando novas terras; 2. intensificar a produção, aumentando a produção por hectare. Qualquer uma das opções pode levar a perdas de biodiversidade elevadas. Assim, as decisões a tomar no processo de adaptação da agricultura às alterações climáticas terão sempre consequências diretas na destruição ou na preservação da biodiversidade e as melhores opções dependerão dos contextos ecológicos locais (exemplos: é preferível intensificar áreas de produção já cultivadas do que expandir a agricultura sobre parques naturais ou outras áreas protegidas; é preferível distribuir e fragmentar o regadio de forma complementar aos sistemas de produção em sequeiro (sem rega) com maior cobertura territorial, maior produtividade da água e possíveis ganhos de biodiversidade, do que concentrar o regadio na primavera-verão em cultura intensivas).
As alterações climáticas, em especial através do aumento de temperaturas, influenciam o desenvolvimento, a reprodução, a sobrevivência e a capacidade de deslocação e ocupação de novos territórios das diversas pragas e doenças que afetam as culturas agrícolas. Espera-se que muitos dos atuais problemas fitossanitários venham a causar mais estragos e se expandam a novas geografias. As subidas de temperatura que tornarão os invernos menos hostis a estes agentes e as mudanças nos padrões dos ventos explicam parte destas previsões, gerando maiores necessidades de recurso a pesticidas nos modelos de produção dominantes.
Segundo o relatório especial do IPCC “Alterações Climáticas e Terra” (2019), entre 1961 e 2013, as terras onde há escassez de água (“drylands”) afetadas pela seca cresceram 1% ao ano, a população residente em áreas afetadas pela seca cresceu quase 200% e as zonas húmidas contraíram 30%. Os níveis de erosão do solo decorrentes das atividades agrícolas, mesmo em agriculturas com mobilização mínima avançam 10 a 20 vezes mais rápido do que o processo de formação do mesmo. Nas agriculturas com práticas de mobilização de solo convencionais a situação agrava-se substancialmente, com a erosão a avançar 100 vezes mais rápido do que a formação de solo, o que deve fazer soar todos os alarmes, dado que estes sistemas de agricultura são dominantes e estão a degradar rapidamente a fertilidade dos solos a nível mundial. Travar a erosão e garantir a regeneração de solos é também uma medida muito relevante para aumentar a captura natural de carbono.
Segundo o IPCC, as secas que sofremos atualmente no mediterrâneo, em consequência das alterações climáticas, são classificadas de “impacto moderado”, e mesmo as projeções mais otimistas que possibilitam cumprir o acordo de Paris, limitando o aquecimento global abaixo dos 2ºC, apontam para um forte agravamento dos impactos da seca, com passagem da classificação de risco e impacto de moderado para elevado já em 2050.
Segundo dados do IPMA, em Portugal, desde os anos 70, a precipitação tem vindo a reduzir aproximadamente 20 milímetros por década e nas últimas duas décadas houve sete anos com quebras superiores a 30%.
Além da seca, há ainda a considerar outros fenómenos como as precipitações extremas ou as vagas de calor que impulsionam fortemente os incêndios de grande dimensão e perigosidade, fazendo-se sentir especialmente em regiões mediterrânicas. Estima-se que o perigo meteorológico de incêndio e a área ardida aumentem respetivamente entre 2-4% e 5-50% por década no sul da Europa. Os impactos dos grandes incêndios deixam marcas duradouras no território agindo como multiplicador dos impactos das alterações climáticas, sendo por isso uma forte ameaça à biodiversidade, à fertilidade dos solos e ao recarregamento e qualidade dos recursos hídricos subterrâneos e superficiais.
Como noutras esferas, as atuais políticas públicas dominantes nacionais e internacionais dirigidas à agricultura e à floresta são apoiadas na crença de um mercado liberal e cada vez mais globalizado que se auto-regula. Os riscos aumentam com a concretização de tratados transatlânticos que agravam ainda mais uma situação que há muito é incomportável. Colocam agriculturas, sociedades e territórios com potenciais e fragilidades muito distintas a competirem pelas prateleiras de super-cadeias de distribuição em qualquer lugar do mundo. Só isso justifica que na Europa seja possível hoje a qualquer cidadão adquirir um quilo de bananas ou de ananases produzidos noutro continente a um preço inferior às maçãs colhidas à porta de casa. Este modelo possibilita aos países mais ricos exportar os impactos ambientais dos sistemas intensivos de produção, abusando de recursos naturais em territórios quase desprovidos de política ambiental e de proteção laboral. A contínua expansão deste modelo, que permite a livre circulação de alimentos em qualquer época do ano sem qualquer consideração pelos distintos stocks e potenciais produtivos a nível regional, continuará a levar à falência de muitas explorações agrícolas e ao abandono de muitas áreas agricultadas em territórios europeus e nacionais, com elevados e negativos impactos ecológicos e socioeconómicos.
Portugal é um exemplo de país onde este percurso tem deixado uma forte marca, com a falência de muitas explorações agrícolas de pequena e média dimensão que perderam lugar de mercado e deram lugar ao abandono ou à expansão de sistemas de produção florestais e agrícolas em monocultura superintensiva, do eucaliptal ao olival. As políticas públicas nacionais são maioritariamente promotoras deste caminho e nem a chegada de predadores fundos financeiros internacionais demoveu os seus promotores. Pairam as ameaças sobre os territórios rurais e os recursos naturais num país sem políticas públicas de ordenamento e justiça social capazes de garantir mínima coesão territorial. Tratam-se de fundos com uma enorme capacidade de ocupação do território e de alteração dos usos do solo, fazendo-se substituir às explorações agrícolas atualmente instaladas em solos férteis a troco de arrendamentos e apropriações de terra (bem que vai escassear) a preços apetecíveis aos proprietários. Isto num país de agricultores envelhecidos, de territórios rurais despovoados e com luz verde para a exploração desenfreada de trabalhadores e trabalhadoras imigrantes, num regime de exceção ao Estado Social. É este novo quadro que está a gerar fortes pressões sobre os ministérios para que se repliquem os exemplos do Alqueva e dos perímetros de rega do sudoeste alentejano. Desde o Projeto Tejo à “auto-estrada da água” que, de transvase em transvase, levará água do Douro até ao milho do Ribatejo ou aos abacates do Algarve. Nas últimas eleições, toda a direita e uma parte substancial do PS prometeu em coro aos seus comparsas que a água dos rios não se vai “perder” para o mar. Ideias que só serão possíveis de concretizar com uma enorme sangria de dinheiros públicos nacionais e comunitários, certamente sob o falso pretexto do interesse público no âmbito da resposta às alterações climáticas. As consequências nacionais de tais medidas seriam desastrosas: salinização e contaminação de solos e lençóis freáticos, perdas de biodiversidade, desvinculação entre as populações e os territórios, conflitos sociais, falência generalizada das agriculturas de sequeiro não subsidiadas, acentuação dos desequilíbrios territoriais, etc. Não se trata de uma fatalidade, mas é preciso arrepiar caminho e muito para proteger o interesse público e evitar estragos irreparáveis ao sustento dos territórios.
De há muito que a direita constrói discursos que opõem a população urbana à população rural, camuflando os impactos das decisões políticas de sucessivos governos, desde a degradação do acesso a serviços públicos essenciais (extensão rural, ensino, saúde, comunicações, transportes, etc.) à ausência de políticas de desenvolvimento rural capazes de assegurar justiça social e coesão territorial ou ao favorecimento de grandes proprietários agrícolas dos campos do sul, em detrimento dos pequenos e médios agricultores de todo o país. A generalidade das populações rurais está insatisfeita e são muitas as dificuldades na resposta a necessidades básicas ambientais e socioeconómicas já bem conhecidas. Hoje, quando a urgência climática evidencia o desastre provocado por um sistema económico predador e beneficiário de décadas de governação com políticas de direita, surge uma nova retórica que tenta não só limpar responsabilidades aos governantes, mas também recuar com os poucos avanços estabelecidos pelas políticas públicas comunitárias e nacionais a nível climático, colocando agora a política ambiental em oposição aos agricultores e às economias rurais. Agem como se não houvesse urgência, como se não fosse necessário reduzir emissões, como se a água não fosse um bem cada vez mais escasso, como se os solos e a biodiversidade não estivessem em delapidação aceleradíssima e tudo isto fosse uma conspiração contra a agricultura. Vale tudo na defesa do lucro extrativista.
As recentes manifestações de agricultores em Portugal e na Europa juntaram um verdadeiro cocktail de descontentamentos, mas também muito oportunismo, com os interesses das grandes indústrias multinacionais agroquímicas, por exemplo, a saírem vitoriosas com o recuo das metas europeias para a redução de consumos de adubos e pesticidas. No caso português, à esquerda, é necessário denunciar esta manobra, mas é também importante reconhecer as enormes dificuldades que os agricultores e produtores florestais enfrentam, porque o desafio é grande e o país está completamente desprovido de serviços de extensão rural capazes de apoiar a necessária transformação florestal e agrícola. Reinventar e lutar pela construção de serviços de extensão rural e disputar caminhos de futuro que garantam dignidade às populações rurais – envolvendo-as – e, simultaneamente, melhores serviços ecológicos à sociedade como um todo, é a melhor forma de puxar o tapete às manobras da direita e de evitar a ascensão da extrema-direita fora dos centros urbanos. Esta não tem sido uma prioridade para a esquerda em Portugal e tem de passar ser.
De futuro, precisamos de sistemas de produção mais engrenados nos processos ecológicos – menos dependentes do consumo de fatores de produção industriais – e capazes de repor matéria orgânica nos solos, captar carbono e recarregar aquíferos, num território com políticas de ordenamento fortalecidas. Este caminho exige o reforço da capacidade operacional do Estado para intervir sobre áreas de gestão e propriedade pública e não pode prescindir dos pequenos agricultores e produtores florestais que temos hoje sintonizados de outra forma. À esquerda, temos de construir caminhos que os mobilizem para tal. Nesse sentido, em primeiro lugar, é preciso lutar pela justa valorização da sua produção, em oposição ao abuso das grandes indústrias e cadeias de distribuição que impõem os preços que querem. Em segundo lugar, deixar de despejar dinheiros públicos em vetores contrários ao pretendido e que excluem parte substancial dos produtores, como são exemplo os 10 mil milhões de euros da Política Agrícola Comum em aplicação até 2027. Em terceiro lugar, há assuntos que têm de sair do domínio quase exclusivo da direita, como é o caso da política de regadio, onde a esquerda não se pode limitar a ser oposição aos projetos de favorecimento económico e desastre ambiental e tem de passar a ser proponente de políticas de regadio social e territorialmente justas e, simultaneamente, promotoras da regeneração de solos e de aquíferos.