Texto de Vicente Ferreira
Ao longo dos últimos anos, têm sido várias as proclamações de preocupação ambiental por parte da União Europeia (UE). O Pacto Ecológico Europeu, lançado pela Comissão Europeia em 2019, incluía uma série de iniciativas, desde o Objetivo 55 – um conjunto de orientações cujo objetivo era reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em, pelo menos, 55% até 2030, através da definição de metas de redução obrigatórias e de mecanismos como o mercado de licenças de emissão de carbono – ou a Lei Europeia do Clima, que definiu o objetivo da neutralidade climática até 2050. Na altura, a Comissão estimava que o investimento necessário para atingir os objetivos climáticos rondaria os 260 mil milhões de euros por ano, o que, além de fundos comunitários e investimento privado, exigiria um esforço significativo dos orçamentos nacionais dos países.
Na última conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP28), a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, sublinhou a necessidade de “acelerar a transição para uma economia mais limpa e saudável”. Von der Leyen, que volta a concorrer pelo centro-direita nas eleições europeias do próximo mês de maio, disse: “temos de garantir a nível doméstico aquilo que defendemos a nível global”, sublinhando o compromisso europeu com o combate às alterações climáticas.
No entanto, para lá dos discursos, o compromisso com o combate às alterações climáticas tem de ser avaliado face às opções políticas concretas. Embora tenha passado relativamente despercebida em Portugal, o Parlamento Europeu e o Conselho chegaram a acordo sobre a reforma das regras orçamentais europeias em fevereiro. A discussão sobre a necessidade de rever as regras já se arrastava pelo menos há uma década, desde que a crise do Euro empurrou países como a Grécia ou Portugal para programas de austeridade com consequências profundas. Apesar de o acordo provisório fazer referência à “proteção de reformas e investimentos em áreas estratégicas como a digital, a climática, a social ou a de defesa”, a verdade é que as novas regras não trazem melhorias e a sua aprovação, pouco escrutinada até agora, coloca em causa a transição energética justa nos países europeus.
O que são as regras orçamentais europeias?
As regras orçamentais foram um dos marcos do processo de integração europeia. O Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) fixou dois limites para os países da UE: a dívida pública não pode exceder 60% do PIB e o défice orçamental não pode ser superior a 3%. Embora estes limites tenham passado a ser defendidos enquanto expressão de uma pretensa racionalidade económica, a sua definição não podia ter sido mais distinta.
Os próprios intervenientes explicaram ao jornal Le Parisien, em 2012, os contornos do processo de elaboração das regras: “Chegámos a este número [do défice] em menos de uma hora […] sem qualquer reflexão teórica”, a pedido do governo francês, que queria “uma regra que pareça que vem de um economista e que possa ser replicada a ministros que entrem no gabinete [do Primeiro-Ministro] a pedir mais dinheiro”. O mesmo se passou com o limite da dívida pública, que correspondia sensivelmente à dívida média dos 12 países da UE na altura em que foi definido.
Os problemas estendem-se às regras que foram definidas para os países que excedessem estes limites da dívida e do défice. O ajustamento imposto aos países mais endividados baseou-se no conceito de “saldo estrutural”, uma variável não-observável que supostamente representa o saldo das receitas e despesas de um governo quando se excluem medidas extraordinárias e efeitos cíclicos. A avaliação do caráter “extraordinário” das medidas sempre variou consoante o país e o período considerado, mas os problemas agravavam-se no caso dos “efeitos cíclicos”, cujo cálculo envolve várias hipóteses e é alvo de enorme controvérsia. Nem as principais instituições chegam a acordo sobre a melhor forma de os medir.
Embora nenhum destes parâmetros fosse observável, as suas consequências foram bastante visíveis: na última crise financeira, os países da Zona Euro que aplicaram programas de austeridade mais severos, seguindo as orientações europeias, não só tiveram uma profunda crise em que o desemprego e a pobreza aumentaram substancialmente, como foram os que viram o rácio de dívida pública aumentar mais. Em Portugal, apesar dos cortes na despesa pública aprovados durante a intervenção da Troika, o rácio da dívida pública aumentou: passou de 100,2% em 2010 para 132,9% em 2014, enquanto o desemprego disparou, atingindo 17,1% em 2013. A austeridade não só não resolveu, como acabou por agravar os problemas dos países que a aplicaram.
O que é que mudou este ano?
A pandemia forçou a União Europeia a suspender estas regras por motivos óbvios: nenhum país era capaz de as cumprir face à mobilização de recursos públicos necessária para reforçar os sistemas de saúde, garantir os rendimentos de quem deixou de poder trabalhar e impedir a falência da maioria das empresas que tiveram de encerrar temporariamente a sua atividade.
Enquanto as regras estiveram suspensas, iniciou-se o processo de revisão. No entanto, a esperança de que o momento fosse aproveitado para uma verdadeira mudança da política económica europeia revelou-se infundada. Os limites para a dívida pública (60% do PIB) e para o défice orçamental (3%) – que, recorde-se, não têm nenhum fundamento económico credível – foram mantidos.
A grande diferença é que, agora, o ajustamento exigido aos países que não os cumpram passa a ter contornos diferentes: os países devem ser sujeitos a planos de ajustamento de quatro anos para corrigir o desvio, mas este período pode ser alargado até sete anos mediante a negociação de determinadas reformas com a Comissão Europeia.
A Comissão fica com a tarefa de analisar a sustentabilidade da dívida do país e definir uma regra de restrição da despesa a ser adotada nos orçamentos do Estado. Países que tenham uma dívida pública entre 60% e 90% do PIB têm de reduzir a dívida em pelo menos 0,5% do PIB por ano, ao passo que os países em que a dívida exceda os 90% do PIB são forçados a reduzi-la em 1% do PIB a cada ano. A incapacidade de cumprir estas metas pode dar origem a sanções.
Como é que as regras europeias afetam a ação climática?
A revisão das regras orçamentais acabou por não alterar fundamentalmente os principais problemas: a UE continua a exigir aos países que diminuam os rácios de dívida pública através de cortes na despesa que não resultaram no passado. Além disso, as regras orçamentais colocam em causa a transição energética. De acordo com um relatório elaborado pelos investigadores Dominik Caddick e Sebastian Mang, só há três países europeus – Suécia, Dinamarca e Irlanda – para os quais os limites impostos não impedem o investimento público necessário para atingir os compromissos sociais e climáticos da UE e limitar o aumento da temperatura média global a 1,5ºC. Todos os outros ficam impossibilitados de investir o suficiente na transição energética – e nos serviços públicos – devido às novas regras. Portugal, com uma dívida pública de 98,7% do PIB, enfrentará restrições significativas.
90% da Europa é impedida de investir o suficiente para alcançar os objetivos climáticos sob as regras europeias propostas
A verde: países que conseguem atingir os objetivos climáticos do Acordo de Paris
A laranja: países que conseguem atingir os objetivos climáticos da UE se as subvenções do Fundo de Recuperação e Resiliência europeu se mantiverem.
A vermelho: países impossibilitados de atingir os objetivos climáticos devido às regras orçamentais
Fonte: https://neweconomics.org/2023/04/beyond-the-bottom-line
Os relatórios que têm sido publicados recentemente sugerem que a UE tem um longo caminho a percorrer na transição energética para combater as alterações climáticas. Para atingir os objetivos de redução de emissões a que se propôs até 2030, os países da UE teriam de investir mais 406 mil milhões de euros por ano face ao que já se investe atualmente em áreas como a energia eólica e solar, as redes de distribuição, a renovação de edifícios, a ferrovia ou os automóveis elétricos, de acordo com o estudo “Défice Europeu no Investimento Climático”, elaborado pelo Instituto de Economia do Clima (I4CE).
A transição energética requer investimentos significativos que são incompatíveis com as regras orçamentais propostas. O Estado tem um papel indispensável através do planeamento e da promoção de investimentos, tanto na produção de energias renováveis e na modernização das redes de transporte e distribuição de eletricidade, aproveitando o potencial existente, como na adaptação de infraestruturas para reduzir o consumo de combustíveis fósseis. Em Portugal, o que não falta são necessidades de investimento público: desde a reabilitação e renovação energética dos edifícios, de modo a melhorar a sua eficiência, para evitar o recurso a formas poluentes de aquecer e arrefecer as casas, incrementar o conforto térmico no interior das habitações e combater os elevados níveis de pobreza energética, aos transportes coletivos eletrificados e, em especial, à rede ferroviária, que tem diminuído ao longo dos últimos anos com o encerramento de linhas.
Além de funcionarem como entrave ao investimento público verde, as novas regras orçamentais europeias também podem acentuar a tendência de divergência entre os países mais desenvolvidos da UE e os restantes, visto que os países mais ricos terão maior capacidade para investir sem quebrar as regras do que os países periféricos, como Portugal. Com efeito, os países do sul da Europa, a região que já está a sofrer de forma mais intensa os impactos das alterações climáticas com a seca, a escassez de água (que afeta a produção agrícola) e o risco acrescido de incêndios, serão os mais prejudicados pelas regras europeias.
A manifestação organizada pelos sindicatos europeus contra as regras orçamentais é um sinal positivo, que mostra que o combate ao regresso da austeridade na Europa se articula com o combate às alterações climáticas. O planeamento público é indispensável para garantir que a transição se faz não apenas com o investimento necessário em infraestruturas e setores de atividade sustentáveis, mas também com emprego decente, salários dignos e qualidade de vida – por outras palavras, para garantir que a transição energética é socialmente justa. As regras orçamentais europeias são um obstáculo nesse caminho.