O trabalho da transição e a transição do trabalho

Texto de António Pusceddu

O trabalho está no centro do debate e da luta pela transição justa — uma visão promovida pelo movimento sindical internacional como solução às profundas restruturações de sectores-chave da indústria fóssil e como plano de proteção do emprego e do ambiente. Como visão transformativa, a transição justa é também considerada uma oportunidade para repensar a organização e a qualidade do trabalho num sentido mais equitativo e sustentável, enquanto possibilidade de abrir o caminho para a redução e desmercantilização do mesmo1. Inclusive pela dimensão sistémica das transformações que a transição justa implica, é essencial questionarmo-nos se não deveria também implicar mudanças profundas na forma social do trabalho e, sobretudo, na sua forma dominante, o emprego e a relação salarial.

1. Culot, M., & Wiese, K. (2022). Reimagining Work for a Just Transition. European Environmental Bureau, Brussels.

Trabalhar devagar?

Lavorare con lentezza, senza fare alcuno sforzo: «Trabalhar devagar, sem fazer nenhum esforço.» Assim cantava o contador de histórias e percussionista (de cadeiras) italiano Enzo Del Re2, em meados da crise energética e da depressão económica que se seguiu aos ditos «gloriosos trinta anos». Desde o fim da Segunda Guerra mundial, foram, esses, os anos de rápido crescimento económico no mundo euro-ocidental, em que os e as trabalhadoras, pela primeira vez, conseguiram alcançar importantes conquistas salariais e sociais. Foram, também, os anos da «grande aceleração»3, durante os quais as emissões de carbono começaram a crescer exponencialmente. No ocaso desta fase, marcada pelo retorno do desemprego em massa, o cantor italiano dava voz a difusa rebelião contra a «tirania» do trabalho, contra a vida sacrificada ao trabalho e à exploração capitalista. Na mesma altura, crescia o movimento ecológico internacional.

2. Del Re, Enzo (1974), Lavorare con lentezza. In Il Banditore

3. Steffen, W., Broadgate, W., Deutsch, L., Gaffney, O., & Ludwig, C. (2015). The trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration. The Anthropocene Review,
2(1), 81-98.

Cinquenta anos depois, a crise climática está a marcar um horizonte dramático da sobrevivência. Ao mesmo tempo, a crise do emprego, a marcante precarização e insegurança, alimentam a nostalgia de um mundo idealizado de carreiras laborais estáveis e duradouras, de oportunidades económicas, de crescente bem-estar, de avanço social. Embora o trabalho seja cada vez mais pobre e desigual e o planeta a cada dia menos habitável, os pilares da sociedade laboral não mostram grande sinais de derrocada, apesar das muitas frestas nas paredes. As ditas «grandes demissões»4 surgiram como fenómeno importante durante e imediatamente depois da pandemia; no entanto o mantra do emprego não conhece crise, enquanto o emprego afunda.

4. Carbonaro, G. (2022, 25 de maio). No end in sight for the ‘Great Resignation’ as inflation pushes workers to seek better-paid jobs. Euronews.

Contudo, enquanto muitos debates sobre o futuro do trabalho — nomeadamente o impacto da revolução digital, da inteligência artificial e da crescente automação — chamam atenção para a redução do emprego, as estimativas da transição pós-carbono, como da Organização Internacional do Trabalho5 (Strietska-Ilina, Mahmud 2019), apontam para a criação de milhões de novos empregos necessários em sectores-chave, como energia ou através da lógica da «economia circular».

5. Strietska-Ilina, O. & Mahmud, T. (2019). Skills for a Greener Future: A Global View. International Labour Organization.

Os planos por uma transição justa são apontados como soluções sustentáveis à crise do emprego e à crise climática. Contudo, a matemática dos novos empregos (que é essencial, seja dito), embora saliente a força transformadora do trabalho em relação à crise social e climática, não aborda de forma suficientemente aberta e clara se e como uma transição justa pode e deve implicar a profunda transformação do trabalho em si mesmo. Ou seja, enquanto a luta é pressionada pela emergência climática e se reivindicam empregos dignos e sustentáveis, não parece haver tempo e espaço suficiente para imaginar e prefigurar a forma e o tipo de trabalho da sociedade pós-carbono. Em suma, é importante não apenas falar do trabalho da transição (o coração estratégico das lutas pela transição justa), mas também da transição do trabalho como forma socialmente organizada de relação com a natureza.

Sabemos que queremos empregos «verdes», criados através da expansão de sectores como as energias renováveis ou os transportes públicos e que estes empregos podem ser, na grande maioria, empregos públicos, mas não falamos o suficiente do que isto vai implicar. Serão, estes empregos da transição, uma replica verde dos empregos fósseis? As e os assalariados da indústria renovável serão a réplica verde de quem trabalha na indústria fóssil? Os empregos para o clima irão reproduzir as mesmas desigualdades— de género, em primeiro lugar — da economia fóssil6? Se assim não for, que tipo de novas relações podem estes novos empregos criar? E todo o trabalho invisibilizado, não remunerado, as «forças de reprodução»7 e as relações de cuidado (dos grupos humano e da natureza extra-humana), que papel terão na transição justa? É possível pensar o futuro do trabalho como questão política central da transição? Que tipo de relações territoriais e comunitárias podem resultar do trabalho de uma transição justa?

6. Irina, V. & Barca, S. (2020). The Just Transition and its work of inequality. Sustainability: Science, Practice and Policy, 16:1, 263-273

7. Barca, S. (2020). Forces of Reproduction: Notes for a Counter-Hegemonic Anthropocene. Cambridge University Press.

A resposta a este conjunto de perguntas, evidentemente, só pode vir de uma reflexão coletiva. Este breve texto limita-se a juntar alguns elementos que considero úteis para a discussão.

O trabalho da desigualdade

Começamos com um pequeno paradoxo que vem de algumas ambiguidades do termo «trabalho». Todas as pessoas trabalham, mas nem todas as pessoas têm um trabalho, ou seja, um emprego. Dizer isto implica que há formas de trabalhar (e são muitas na verdade) que ficam fora do emprego convencional e formal, ou seja, daquela que costumamos considerar (e que de facto é) a relação laboral socialmente caracterizante e ideologicamente dominante desde a expansão do capitalismo. Isto não quer dizer que seja a mais comum, em geral. Pelo contrário, apesar da sua força ideológica e normativa, o trabalho assalariado constitui apenas uma parcela do conjunto de formas de ganhar a vida e de atender às exigências da reprodução social no seu conjunto. Contudo, a naturalidade de que para trabalhar é (quase sempre) preciso ter emprego e que só arranjando emprego é possível ter salário para viver constitui um pilar incontestado das sociedades capitalistas8.

8. Barca, S. (2020). Forces of Reproduction: Notes for a Counter-Hegemonic Anthropocene. Cambridge University Press.

Entendamo-nos: falamos da maioria da população, aquele conjunto mais ou menos variado e diferenciado de classes trabalhadoras e de trabalhadores proletarizados que têm de trabalhar para viver (no sentido amplo, social, do termo). Há uma minoria (esta também com algumas variações) que concentra a grande parte da riqueza e dos rendimentos, que frequentemente herdou e que transmitirá às gerações seguintes9, que não precisa arranjar emprego para viver (e viver bem), mas que, sim, precisa do trabalho dos outros.

9. Piketty, T. (2013). Le Capital au XXIe siècle. Le Seuil.

Estas desigualdades, que se cruzam com formas diferentes — desigualdades de género, racismo, discriminação em base étnica etc. — não são apenas um problema socioeconómico, a que interessa a distribuição da riqueza e dos rendimentos (da qual derivam poder, possibilidades e oportunidades, acesso a educação, saúde etc.). São também um problema diretamente ligado à crise climática.

Segundo o World Inequality Report10, a riqueza extrema e a pobreza extrema, nos últimos anos, aumentaram simultaneamente. Em 2021, os 10% mais ricos detinham 52% do rendimento mundial, em comparação com 8,5% detido pelos 50% mais pobres. Quanto à riqueza, os 10% mais ricos possuem cerca de 76% da riqueza e os 50% mais pobres cerca de 2% da riqueza mundial. Vários relatórios sublinham como as desigualdades económicas se refletem em níveis desiguais de emissões de carbono. O relatório de Lucas Chancel11 faz uma estima da «desigualdade global das emissões de carbono» entre 1990 e 2021. Desta estimativa resulta que os 10% mais ricos são responsáveis por 48% das emissões (sendo o 1% responsável por 17%), enquanto os 50% mais pobres serão responsáveis por 12%. O relatório da Oxfam sobre a desigualdade carbónica12 mostra que, nos países da União Europeia, a redução de emissões só é alcançada pelos europeus mais pobres, enquanto os 10% mais ricos têm aumentado as suas emissões. A UE tem 7% da população mundial, mas é responsável por 15% das emissões do consumo global.

10. Chancel, L. et al. (2022). World Inequality Report. World Inequality Lab.

11. Chancel, L. (2021). Climate Change & the Global Inequality of Carbon Emissions, 1990-2020. World Inequality Database.

12. Khalfan, A. et al. (2023). Climate Equality: A planet for the 99%. Oxfam International.

Relativamente a Portugal, «os mais ricos são responsáveis por 33 vezes mais emissões que os mais pobres»13 (Zero 2020). Em 2015, «os 5% mais ricos foram responsáveis por cerca de 20% das emissões». Estes dados mostram como a justiça climática não pode ser separada da justiça social; e como o trabalho da maioria, que sustenta pequenas minorias, é inevitavelmente a força que alimenta qualquer transição, justa ou injusta que seja.

13. Zero (2020). Em Portugal, os mais ricos são responsáveis por 33 vezes mais emissões que os mais pobres.

O estado do trabalho

Qualquer tipo de reconversão produtiva é inevitavelmente complexa; ainda mais no caso da transição de uma economia maioritariamente dependente de combustíveis fósseis para uma economia que seja de carbono-zero. Tudo isto implica o desmantelamento de enormes infraestruturas e a construção de novas, com a previsão de perda significativas de empregos «cinzentos», substituídos por empregos «verdes». Estamos perante um cenário marcado pela destruição de emprego, por um lado, e pela criação de emprego, por outro lado, segundo dinâmicas de desindustrialização/industrialização, movimentos de capitais, com implicações altamente desiguais no que diz respeito às relações territoriais.

Neste cenário é fundamental colocar a questão do trabalho como central na construção do horizonte de transição justa. É importante lembrar que o trabalho tem mudado profundamente nas últimas décadas e que estas mudanças têm afetado profundamente as configurações estatais, sociais e políticas que herdamos do século passado (sobretudo a partir do pós-Segunda Guerra). Como aconteceu, por exemplo, no que diz respeito às funções redistributivas do Estado e à expansão do Estado social (por cá, bastante incompleta e inacabada, como no conjunto da Europa do Sul); tudo isto mudou e não vai regressar à forma que outrora conhecemos. Dito de outra forma, ao pensarmos nas lógicas distributivas e nas suas escalas (o papel do Estado, a sua transformação) e novas formas de articulação do Estado social, não podemos pensar de forma regressiva (voltar ao que já se perdeu), antes é preciso ter a ousadia de repensar e construir olhando para frente.

Apesar de o trabalho/emprego se tornar uma gaiola (muito pouco dourada), é importante interrogar-se como é possível pensar e imaginar o trabalho de forma diferente, não apenas nos sectores diretamente dependentes dos combustíveis fósseis, mas também no que diz respeito às tarefas essenciais da reprodução social na sua complexidade (da produção alimentar à produção de energia; dos cuidados de saúde ao ensino etc.). Questionarmo-nos através de que tipos de relações e dentro de quais imaginários; mas também que tipo de economia pode sustentar uma sociedade pós-trabalho. Algumas respostas apontam para o scaling-down, ou seja a redução importante da escala da economia (um decrescimento radical) e a sua reorganização de forma territorial, de modo a permitir também a redução do impacto ecológico das necessidades produtivas.

Contudo, há toda uma complexidade que não é apenas a conversão de gigantes aparatos produtivos, que devoram imensas quantidades de energia e que assentam na utopia louca do crescimento ilimitado. Há também a questão da conversão e reorganização de complexidades institucionais que aqueles sistemas produtivos tem contribuído para moldar. É igualmente necessário considerar a questão da organização dos estados como principais formas de organização politico-territorial, questão essa que não está desligada das formas coletivas de controlo da produção e das suas finalidades. De facto, uma transição justa exige repensar as diferentes dimensões e articulações territoriais e as relações mais específicas entre lógicas produtivas/reprodutivas e sistemas ecológicos.

O trabalho além do trabalho

Neste cenário, é fundamental colocar a questão de como o trabalho da transição justa — ou seja, o trabalho necessário para cumprir a profunda reconversão dos sistemas produtivos e das finalidades sociais das relações económicas — vai implicar também a transição do trabalho (o emprego como forma dominante das nossas vidas) para formas diferentes de organizar as atividades necessárias para satisfazer as necessidades humanas (ou seja, a forma de mobilizar o trabalho social). A questão de fundo é saber se, dentro do horizonte de transição pós-carbono, cabe também a transição pós-laboral, a possibilidade de organizar as atividades produtivas e reprodutivas segundo finalidades sociais e ambientais de igualdade, reciprocidade e sustentabilidade. Ou seja, trata-se de considerara ressocialização do trabalho segundo as necessidades coletivas

Estas diferentes possibilidades são, desde há algum tempo, parte de um debate sobre as oportunidades que a transição justa está a criar para repensar o trabalho ou, segundo outras posições, uma sociedade pós-laboral14 (Pellizzoni 2022). A redução do tempo de trabalho, a profunda revisão da relação entre vida, trabalho e identidades sociais surgem como possibilidade para uma gradual transformação.

14. Pellizzoni, L. (2022). Post-work and ecology. In L. Pellizzoni, E. Leonardi & V. Asara (Ed) Handbook of Critical Environmental Politics (Elgar, pp. 577–592)

Isto claramente levanta outro problema que não é apenas individual: o que fazer do (e no) tempo libertado? Alguém dizia que não faz sentido reduzir o tempo de trabalho para as pessoas se aborrecerem em frente da televisão. A reconquista do tempo sem trabalho é outro desafio essencial, que pode abrir importantes espaços para pensar e praticar novos relacionamentos com a natureza não humana, para realizar formas expansivas de cuidados extra-humanos e multiespécies, bem como de regeneração ecológica. Neste desenho de gradual transformação das relações entre trabalho, emprego e salário, fazem parte as hipóteses de rendimentos básicos desligados de qualquer obrigação laboral, bem como as hipóteses de organização social do trabalho fora das relações de mercado. Neste sentido, os «empregos públicos» que constituem uma parte central das propostas da transição justa, de que forma se podem distanciar ou distinguir dos empregos do mercado laboral? O debate sobre o rendimento básico (universal ou não) é amplo, às vezes controverso, mas indispensável e irrenunciável numa ótica de transformação sistémica, bem como a necessidade de pensar mais em profundidade a relação entre o Estado social e a transição justa.

Para concluir, o problema que coloca a transição justa não é apenas a rutura com os combustíveis fósseis, mas a saída de um mundo de trabalhadores e patrões e do trabalho a todo o custo. Desta questão resulta que não são apenas os empregos a ser necessários para o clima, mas formas radicalmente diferentes de organizar e conceber a vida em sociedade, as exigências reprodutivas e as finalidades produtivas. É mesmo preciso trabalhar devagar.