Não há saúde B — como a crise climática abre a porta a várias crises sanitárias

Texto de André Traça

Dubai, 3 de Dezembro de 2023, quarto dia da cimeira do clima COP 28 em ano recorde de temperatura e emissões de CO2 [IPCC]. Enquanto delegados são trazidos e devolvidos em jatos privados, um smog espesso cobre a metrópole do Golfo, nesse dia. Os níveis de poluição por partículas finas PM2.5 atingem três vezes o recomendado, ironicamente, no exato dia dedicado aos efeitos que as alterações climáticas e a qualidade do ar têm na saúde. O texto final da cimeira, longe de acenar com uma cura efetiva para a doença do fóssil, limita-se a falar de uma «transição», sem compromisso com a redução efetiva de emissões, prescrevendo assim uma já familiar e desastrosa receita.

O menu dos próximos tempos, para a Humanidade, será provavelmente escaldante, com uma projeção de elevações da temperatura média de 1,5 a >3ºC até ao final do século, face a níveis pré-industriais. Contando apenas ainda com 1,14ºC de variação no momento presente, as provas servidas sobre o que as mudanças climáticas produzem na nossa saúde corroboram a expectativa científica de que esta é mesmo a maior ameaça global do século. Não há fuga possível, já que nenhuma região do globo parece ser inteiramente poupada aos crescentes impactos das mudanças climáticas na saúde física e mental.

Previsivelmente, são as populações mais vulneráveis — habitualmente as que menos contribuem para as emissões — as mais afetadas, graças a injustiças estruturais e desequilíbrios de poder entre classes, géneros, nacionalidades, identidades raciais e outros diferenciadores estabelecidos pelos construtos sociais do capitalismo contemporâneo. Neste ensaio pretende-se explanar os vários mecanismos pelos quais a crise climática é também uma crise sanitária, identificar como é agravada pela poluição atmosférica atual, e, sublinhar a o seu impacto diferencial na saúde de acordo com desigualdades socioecónomicas, finalizando com caminhos possíveis de mitigação e adaptação.

Efeitos das alterações climáticas na saúde — o aquecimento esquenta, inunda, seca e ferra

Um aspetos mais conhecidos da crise climática é o aquecimento global e este traduz-se antes de mais na ocorrência de vagas de calor — definidas como períodos prolongados de tempo anormalmente quente (pelo menos cinco graus acima da temperatura máxima de referência). Estas são cada vez mais frequentes (cinco vezes mais face à era pré-industrial) e mais intensas [IPCC]. Cerca de metade da população mundial estará exposta a calor extremo, mil milhões de pessoas em contexto de atividade laboral. A evidência acumulada sugere-nos que, das mortes relacionadas com o calor, cerca de 37% serão relacionadas com mudanças climáticas antropogénicas. Na população com mais de 65 anos, mais propensa à deterioração natural da capacidade dos vários órgãos regularem a temperatura corporal, terá havido um aumento de 70% em duas décadas (dados da Organização Mundial de Saúde). O calor extremo é responsável por mortes diretas via golpe de calor e desidratação, mas também por um excesso de mortalidade ao contribuir decisivamente para mais doença cardiovascular (enfartes de miocárdio e AVC), doença respiratória aguda e renal. Para além dos idosos, também correm particular risco as crianças mais novas e doentes crónicos — respiratórios, cardíacos, diabéticos e os que sofrem de doença mental.

Outro impacto fundamental das alterações climáticas dá-se ao nível do aceleramento do ciclo da água — o movimento contínuo de água entre a terra e a atmosfera. Os oceanos terão absorvido cerca de 90% do excesso de calor, o que foi notório na sucessiva quebra de recordes da temperatura média oceânica em vários meses de 2023. Este aumento de temperatura resulta em mais evaporação da água do mar, implicando mais vapor de água na atmosfera, sobretudo quando o ar é mais quente. Daí e da disrupção das correntes oceânicas resultam fenómenos de chuvas extremas mais frequentes e mais intensas, aos quais nalguns contextos se adiciona o degelo de glaciares e superfícies de neve, criando as condições perfeitas para inundações. O Paquistão, país com a maior concentração de glaciares fora das regiões polares, tem sofrido com inundações devastadoras como as que em 2022 custaram perto de 1800 vidas (dados da página earth.org). Para além das ameaças diretas à saúde e à vida colocadas pelo risco de afogamento, desalojamento e derrocadas, as inundações comportam o risco de contaminação por águas residuais e potenciam a persistência e replicação de algumas bactérias e parasitas, como a Leptospira, Vibrio (responsáveis pela cólera e outras doenças) e Cryptosporidium resultando num aumento de doença infeciosa. Terá sido o caso, por exemplo, do surto de cólera que se seguiu às inundações na Beira, Moçambique, em 2019. Por outro lado, se em alguns locais vemos precipitação excessiva, noutros constatamos que é mais escassa. Acrescentando a maior evaporação dos solos motivada por temperaturas mais elevadas, temos maior risco de fogos florestais e secas, como as que nos temos corriqueiramente habituado em Portugal — segundo o IPMA, das 11 secas mais graves dos últimos 80 anos, seis tiveram lugar nos últimos 20. Alagadas e/ou ressequidas, as terras agrícolas veem lavras, semeios, colheitas e pasto para gado impossibilitados, trazendo insegurança alimentar e desnutrição para quem delas depende. Exemplo disso foi a seca recorde de 2022 no Corno de África para cuja severidade terão contribuído as alterações climáticas, afetando mais de 40 milhões de pessoas, quatro milhões das quais em necessidade de ajuda humanitária. Já na Ásia, os glaciares dos Himalaias derreteram 65% mais rapidamente em 2010–2020 em comparação com a década anterior, degelo este que pode derreter parte do sustento alimentar dos quase dois mil milhões de pessoas em 16 países que dependem da água doce de 12 rios alimentados pelo gelo e neve da cordilheira.

Estamos também a criar condições cada vez mais favoráveis para o contacto com antigos, novos e mais eficazes patogénicos microbiológicos, sejam eles vírus, bactérias ou parasitas. Os fatores para que tal aconteça são diversos. Desde logo, as mudanças de temperatura e precipitação facilitam a expansão de vetores como mosquitos, carraças ou aves. Acresce que as disrupções de habitat por ondas de calor, incêndios ou secas motivam que formas de vida selvagem como morcegos, roedores ou primatas se desloquem para áreas de contacto com humanos — trazendo consigo os seus patógenos. Por fim, existe o risco de libertação de bactérias ancestrais do permafrost (camada de solo permanentemente congelado que existe sobretudo no Ártico) em degelo progressivo.

Estima-se que mais de 58% das doenças infeciosas enfrentadas por humanas possam ser agravadas pelos danos climáticos. A época de transmissão da malária tem vindo a dilatar-se em várias regiões, com os maiores aumentos a ocorrerem nas terras altas de África e da América Central e do Sul, onde as mudanças climáticas têm criado melhores condições para a longevidade e replicação dos mosquitos anopheles facilitando a transmissão do parasita que alberga. O potencial para a transmissão do dengue também tem aumentado à medida que melhoram as condições para a emergência e reemergência dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, cuja distribuição se tem expandido, tanto de forma esporádica como permanente, em latitudes mais elevadas do Hemisfério Norte, como na Europa continental e insular, ilustrado pelo surto de dengue em 2012, na Madeira. Um surto de antrax na península de Yamal no norte da Sibéria, em 2016, responsável pela morte de centenas de renas e alguns dos seus pastores, terá tido origem em bactérias ancestrais libertadas de permafrost descongelado, demonstrando uma possibilidade inquietante: a abertura de uma caixa de pandora microbiana, nativa de um outro tempo e, por isso, relativamente nova para os humanos. Por outro lado, aos efeitos climáticos diretos sobre as áreas para onde migra e se radica alguma vida selvagem somam-se os efeitos da urbanização, deflorestação e indústria agroalimentar, favorecendo a evolução perigosa de alguns vírus e o aumento da interface de contacto entre humanos e animais selvagens, aumentando a probabilidade de micro-organismos darem um salto de espécies, tal como tem acontecido com Zika, Ébola, gripe aviária e suína e outros. Ainda que não haja uma ligação fortemente documentada entre a Covid-19 e as alterações climáticas, foi já elaborada uma hipótese sobre a origem da doença que emana dos mecanismos acima descritos. Segundo esta, teria sido um surto de peste de suína africana, de grandes dimensões, na China, em 2018–2019, causador da morte de 140 milhões de porcos (40% do total do país), que teria motivado, pela marcada diminuição de disponibilidade de suínos no mercado alimentar, um aumento do consumo de espécies selvagens facilitador da transição do vírus para a espécie humana — mais uma peça num possível puzzle das origens da pandemia.

Finalmente, vão-se acumulando provas sobre os impactos da crise climática na saúde mental por via do calor, chuvas torrenciais, fogos, secas ou inundações, frequentemente associados a um aumento do sofrimento psicológico, da mortalidade em pessoas com perturbações pré-existentes, da taxa de internamentos psiquiátricos e dos suicídios.

Poluição atmosférica — o segundo rio tóxico que brota da mesma nascente

Quando os combustíveis fósseis ardem, não sobra apenas o CO₂, o composto que dá o contributo mais decisivo para engrossar o cobertor que aquece a terra. Pelo caminho, fica um rasto de outras emissões que cobram uma fatura pesada em saúde e vidas num prazo bem mais curto. Este rasto tóxico é um componente fundamental da poluição atmosférica, considerada pela OMS uma das principais ameaças globais à saúde humana. Mais de 90% da população mundial respira ar de qualidade não ideal e estima-se que, por via dos efeitos já estudados e conhecidos, tal seja responsável por mais de cinco milhões de mortes prematuras todos os anos pelo mundo fora. Entre os culpados incluem-se sobretudo as partículas finas como as PM10 ou PM2.5 e os óxidos de azoto (NO2 e NOx), cujas concentrações são regularmente medidas e disponibilizadas pela Agência Portuguesa do Ambiente. Os seus efeitos, mediados por inflamação das vias aéreas e do organismo como um todo e pela disrupção do sistema imunitário, vão desde doença cardíaca, AVC, cancro do pulmão, doença respiratória crónica como asma e DPOC ou infeções respiratórias baixas. No que toca à Covid-19, acumulam-se provas sólidas relativas a como a poluição atmosférica poderá contribuir para doença mais grave e mais letal em pessoas que contraem o vírus. Os impactos da poluição na saúde valem tanto para a exposição de longo prazo (cumulativa ao longo de anos) como também para a de curto-prazo, tal como demonstrado por pelo aumento de visitas a serviços de urgência por doença respiratória, cardíaca e neurológica após dias mais poluídos, estimando-se que haja mais sete mortes por cada mil na sequência de aumentos modestos da concentração ambiente de PM2.5.

Estima-se que estes dois rios tóxicos — alterações climáticas e poluição do ar — se encontrem nalgumas curvas, avolumando a soma dos seus caudais. A concentração de partículas no ar pode aumentar, devido a alterações do metabolismo vegetal, fogos florestais e tempestades de poeira. A fuligem (carbono negro que resulta de combustão incompleta de matéria orgânica) absorve o calor aumentando temperaturas locais e degelo de glaciares. O calor e a radiação ultra-violeta, por seu lado, fazem aumentar os níveis de ozono à superfície.

Impacto diferencial — um planeta mais doente, mas uns mais doentes que outros

No capitalismo encontramos a raiz primária da exploração desenfreada de recursos naturais e do seu uso e abuso para sustentar um insustentável modelo de produção baseado não em necessidades, mas no lucro. Se tivermos ainda em conta como este divide e hierarquiza a humanidade de acordo com as classes sociais, criando desigualdades entre grupos étnico-raciais e géneros com acesso diferencial à saúde, tanto em prevenção, manutenção como em intervenção, não é difícil entender que os efeitos desastrosos do clima na saúde se abatem de forma diferente sobre uns e outros.

A vulnerabilidade diferenciada aos desafios climáticos das populações, entre diferentes países ou dentro do mesmo país, expressa-se no acesso a cuidados (a seguros de saúde, por exemplo, no caso de migrantes indocumentados), a áreas geográficas menos expostas (inundações, fogos, calor) ou a habitação adequada (protegida do calor e de insetos).

Mais de 3,5 mil milhões de pessoas habitam áreas altamente suscetíveis à crise climática. Apesar de contribuírem muito pouco para as emissões globais, os países de baixo rendimento e os países insulares do Sul Global, frequentemente herdeiros de legados históricos e atuais do colonialismo, sofrem os maiores impactos da crise climática na saúde. Em regiões vulneráveis, segundo dados da OMS, a taxa de mortalidade devida a eventos extremos na última década foi 15 vezes maior que nas menos vulneráveis.

A exposição ao calor não só reduz a produtividade laboral como expõe os trabalhadores a riscos de saúde, mais marcados para quem desenvolve trabalhos fisicamente exigentes no exterior e/ou ambientes não climatizados — tendencialmente menos bem remunerados. Mais de 1,3 mil milhões de trabalhadores terão perdido mais de 143 horas de capacidade laboral em 2022 — frequentemente sinónimo de perda de rendimento —, 80% dos quais de países em vias de desenvolvimento. . Nos Estados Unidos, já foi apurado que pessoas racializadas seriam mais propensos a doença aguda durante vagas de calor, embora este efeito não possa ser destrinçado do status socioeconómico. No entanto, acumulam-se os estudos, nos EUA, que ajudam a corroborar o papel do racismo estrutural na maior exposição a riscos ambientais, como os que indicam que as populações racializadas serão expostas a concentrações de partículas e NO₂ em níveis entre 8 a 30% mais elevados do que a média da população.

Por último, a crise climática também não é neutra no que toca ao género. Em muitas regiões do globo, as mulheres têm uma responsabilidade desproporcional em providenciar água, alimentos e combustível. Sendo agricultura o principal setor de emprego nos países de baixo e médio rendimento, secas e chuvas erráticas pressionam raparigas em idade escolar, frequentemente obrigadas a abandonar estudos para ajudar as mães a obter recursos e rendimentos das terras. A exposição ao calor, agravada pelo trabalho no exterior, e algumas infeções transmitidas por vetores aos quais as mulheres estão mais expostas, por serem as principais responsáveis pelos processos de recolha de água, têm particulares implicações na saúde materna. Expressões variadas do patriarcado implicam que as mulheres estejam tendencialmente mais excluídas de processos de tomada de decisão, financeiramente mais dependentes de homens ou com menos acesso a educação, contribuindo para menor acesso a oportunidades para aliviar a sua exposição aos impactos da crise climática, o que, por sua vez, aumenta a sua vulnerabilidade a várias formas de violência de género.

Mitigação e adaptação — conter a explosão, proteger dos estilhaços

Face a um horizonte incerto repleto de algumas minas visíveis e expectáveis, mas também de outras mais obscuras ou imponderáveis, impõe-se desenhar mapas fiáveis que nos ajudem a navegar esse terreno com menos feridas e menos dor. A mitigação refere-se às a intervenções que limitam a emissão de gases de efeito de estufa ou aumentam a sua captura, enquanto a adaptação se refere às que potenciam a resiliência às mudanças climáticas, reduzindo os riscos para a saúde humana e planetária, salvaguardando qualidade de vida para todas as pessoas e vitalidade dos ecossistemas. É urgente que os sistemas de saúde desenvolvam um mapeamento de riscos, sistemas de alerta precoce e um reforço de capacidade que lhes permita melhor lidar com desastres e um aumento de ameaças crónicas, o que também deve entrar nos pagamentos dos países industrializados aos mais vulneráveis. No entanto, um aumento de temperatura global de 2–3ºC como o ditado pelas políticas atuais pode colocar os sistemas de saúde para lá da sua capacidade de adaptação, pelo que não há alternativa saudável a uma mudança de paradigma que torne real uma estratégia de mitigação ambiciosa.

As boas notícias são que as oportunidades colocadas pelas várias estratégias de mitigação estão aqui e ali, grávidas de mais ganhos secundários para a saúde. Em ambiente urbano, a substituição da mobilidade baseada no veículo individual movido a energia fóssil por mobilidade coletiva de emissões zero e mobilidade ativa (a pé e bicicleta), para além da redução de emissões com impacto climático, implica uma melhoria importante na saúde perdida por via da poluição atmosférica e sedentarismo. Sendo a produção alimentar responsável por 30% das emissões globais de gases de efeito de estufa, com 57 % das emissões do setor agrícola relacionadas com a produção de carne vermelha e leite, a promoção do acesso barato a dietas saudáveis baixas em emissões pode ajudar a reduzir as milhões de mortes secundárias devidas a dietas pobres enquanto participa no esforço de mitigação. A agro-florestação urbana e periurbana, para além de sequestrar carbono atmosférico, permite reduzir o efeito das ilhas de calor urbanas, aumentar áreas de sombreamento e promover atividade física, para além do fulcral contacto social, todos fortes aliados da saúde mental e física. Assim, muitas das medidas que nos salvaguardam de uma catástrofe climática insustentável são também aquelas que nos trazem hábitos mais saudáveis e maior qualidade de vida. O que lhes dá ainda mais força para as defendermos perante maiorias sociais que, além de estarem a despertar para o perigo da crise climática, poderão demonstrar abertura a políticas públicas promotoras da saúde que favorecem a mitigação climática.

Não há planeta B e não há vida B, pelo que combater a crise climática, prevendo e acautelando os seus estragos é provavelmente o maior imperativo sanitário e existencial do nosso tempo.