Oceano e clima – e tudo o que há pelo meio

Texto de Ana Matias

A história da vida na Terra desenrola-se ao longo de milhares de milhões de anos e é uma narrativa complexa que conhece o seu início nas profundezas do oceano. Foi no oceano que os primeiros minerais e compostos químicos começaram a interagir num “caldo” que viria a permitir o aparecimento das primeiras moléculas orgânicas. A luz solar e os produtos resultantes de atividade vulcânica subaquática ofereceram os elementos necessários para o surgimento de um produto que nunca viria a conhecer o fim da sua evolução.

Os primeiros organismos unicelulares, predecessores de todas as formas de vida na Terra, prosperaram nas águas quentes e cheias de nutrientes do oceano primordial, que permitiu um aumento exponencial da biodiversidade, lançando as bases para a existência da vida na Terra como a conhecemos.

A passagem da vida para o ambiente terrestre proporcionou o complexificar de uma teia ecológica interdependente, em que formas de vida menos evoluídas foram formando o substrato para o aparecimento de outras subsequentes, até chegarmos à sofisticação e à diversidade biológica de hoje e que tanto ameaçamos.

Durante todo este tempo, o oceano desempenhou um papel absolutamente crítico na sustentação da vida na Terra, continuando a ser o berço de muitas formas de vida e mantendo o equilíbrio ambiental. As suas condições estáveis e os ecossistemas marinhos continuaram a ser cruciais para a sobrevivência e evolução de inúmeras espécies terrestres. Além disso, e certamente não menos importante, o oceano ocupou e ocupa um papel central na regulação do clima, influenciando de forma determinante os padrões climáticos.

A relação do oceano com o sistema climático é uma dança intrincada, onde as correntes oceânicas, a temperatura da água e os processos biogeoquímicos desempenham papéis fundamentais. Esta interconexão molda não apenas o clima global, como também influencia diretamente a vida em todo o planeta, mesmo nos habitats que mais distam do mar.

Um só oceano em movimento

Antes de prosseguir, importa tirar do caminho a dicotomia oceano/oceanos e compreender por que razões a perceção e compreensão do oceano como um corpo uno é importante para o entendimento coletivo dos impactos que o afetam. Estamos a falar de um corpo singular, único e altamente conectado. A ideia de termos vários “oceanos” individualizados é sobejamente limitante ao depararmo-nos com a fluidez e continuidade das massas de água que envolvem as massas continentais, essas sim separadas por barreiras físicas e geográficas. Esta unidade oceânica torna-se evidente quando nos debruçamos sobre fenómenos como a migração de seres vivos marinhos ao longo de milhares de quilómetros, transcendendo as fronteiras arbitrariamente definidas pelos mapas humanos.

A verdadeira unidade do oceano é ainda mais evidente quando se analisam os impactos que sofre. As alterações climáticas, por exemplo, têm efeitos em todo o oceano sem exceção e o mesmo é verdade para outro tipo de impactos, como os provocados pelo lixo marinho e, em particular, pelos materiais que flutuam. Veja-se a experiência involuntária levada a cabo por milhares de patinhos de borracha e outros brinquedos infantis para o banho. Em 1992, durante uma tempestade no Pacífico, um mega porta-contentores da Evergreen (sim, essa Evergreen) perdeu carga de forma significativa, libertando cerca de 30 000 brinquedos de borracha flutuantes para o oceano. A perda destes brinquedos, problemática para o meio marinho, revelou-se surpreendentemente de enorme utilidade para alguns cientistas que estudavam, à data, modelos de correntes oceânicas. Estes lançaram uma campanha global para que as pessoas encontrassem e reportassem o encontro destes brinquedos sempre que possível, o que começou a acontecer 10 meses depois do acidente. Tal contribuiu não só para os investigadores conseguirem ter uma visão mais fidedigna dos padrões de dispersão das correntes oceânicas que estudavam, como para conseguirem prever onde haveria aglomeração preferencial de patinhos ao longo do tempo. O caso – que ficou conhecido como Moby Duck – ilustrou, numa altura em que a conservação do meio marinho ocupava um lugar (ainda mais) modesto nas preocupações humanas, a alta conectividade do meio e como um impacto introduzido num ponto pode acabar a dezenas de milhares de quilómetros do local de origem.

Também no que toca à transferência de calor, as correntes desempenham um papel fundamental para a regulação do clima. Massas de água em movimento constante, como a conhecida corrente do Golfo (no Atlântico Norte, desde o Golfo do México à Europa), distribuem o calor de forma desigual no globo, impactando de forma direta as condições climáticas em diferentes regiões. A manutenção dos padrões climáticos é importante para aumentar a sua previsibilidade e permitir adaptações específicas sazonais. Esta transferência de calor, no Atlântico em particular, é o que permite que as temperaturas na Europa ocidental sejam bastante mais amenas do que noutras localizações à mesma latitude.

No verão passado, foi notícia um estudo que aponta para uma desaceleração e possibilidade do colapso, em meados deste século, do sistema de correntes do Atlântico, do qual a corrente do Golfo faz parte, se o ritmo atual de emissões se mantiver no futuro. Um potencial colapso do sistema teria consequências desastrosas um pouco por todo o mundo, aumentando a frequência e intensidade das tempestades, diminuindo as temperaturas na Europa e provocando o aumento do nível das águas do mar na costa leste da América do Norte.

Sumidouro de dióxido de carbono e de calor

O papel do oceano na regulação do clima não se esgota na importância das correntes; também o sequestro de dióxido de carbono é incontornável. A água do mar tem a capacidade de capturar CO2 da atmosfera, agindo como um sumidouro natural. No entanto, também este processo não é isento de consequências. Pelo menos ¼ do CO2 libertado pela queima de combustíveis fósseis não permanece na atmosfera, dissolvendo-se, em vez disso, no oceano. Desde o início da era industrial, o oceano capturou cerca de 525 mil milhões de toneladas de CO2 da atmosfera, absorvendo atualmente cerca de 22 milhões de toneladas/dia. Aquilo que, ao início, parecia positivo, rapidamente foi percebido como problemático, porque a dissolução de CO2 na água promove uma reação que baixa o seu pH. Dados apontam que, só nos últimos 200 anos, a água do oceano se tenha tornado 30% mais ácida, com efeitos nefastos nos delicados ecossistemas marinhos, dos quais as espécies com concha são as principais vítimas. O fenómeno da acidificação do oceano é vastamente conhecido para a comunidade científica, que o tem acompanhado desde os anos 90, mas a rapidez das alterações no meio motivou uma preocupação mais premente, com a acidificação do oceano a ser atualmente elencada como um dos nove limites planetários (e um dos três que ainda não foram ultrapassados).

Numa outra perspetiva, também o aumento do nível médio das águas do mar é um resultado das alterações que o oceano tem sofrido devido ao aumento da temperatura atmosférica. Esta não só provoca o aquecimento da água do mar, acelerando o degelo das calotes polares, como a invasão do mar por água que estava outrora armazenada nestas massas de gelo aumenta o seu volume, fazendo-o transgredir para zonas costeiras. Além disso, o fenómeno da expansão térmica também desempenha o seu papel. O aumento da temperatura do oceano aumenta o seu volume, contribuindo então duplamente para o avanço do mar sobre os continentes. As populações costeiras vulneráveis são as vítimas mais imediatas do aumento do nível médio das águas do mar, especialmente em cotas baixas.

Estima-se que Tuvalu, uma pequena ilha-nação no Pacífico com 11 000 habitantes, seja o primeiro país a desaparecer por causa das alterações climáticas já no final deste século. Notícias recentes deram conta da celebração de um contrato entre Tuvalu e a Austrália para receber os refugiados climáticos. A notícia, tristemente normalizada, coloca no horizonte temporal das gerações que estão a nascer agora o desaparecimento de um território habitado, com identidade cultural própria, por causa dos impactos antropogénicos no clima. Vale a pena acrescentar que os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (conhecidos por SIDS, na sigla em inglês) são casa para 65 milhões de pessoas, o que levanta questões não só de justiça ambiental, mas também da mais elementar justiça social.

Outra característica do oceano que tem ganho relevância quando se fala de aquecimento global é a sua extraordinária capacidade calorífica, ou seja, a capacidade que este tem de receber uma quantidade substancial de calor sem que a sua temperatura aumente significativamente. A realidade é que a absorção e redistribuição de calor pelo oceano desempenha um papel crucial na regulação térmica do planeta e na moderação das condições climáticas. Estima-se que 90% da energia térmica produzida entre 1971 e 2010 tenha sido absorvida pelo oceano, sem que este tenha alterado proporcionalmente a sua temperatura. Os mesmos dados demonstram que, se os primeiros dez quilómetros da atmosfera tivessem a capacidade de absorver tal quantidade de calor no mesmo período, esta teria aquecido 36°C.

Um dos mais icónicos exemplos do resultado do aquecimento do oceano é o desaparecimento da Grande Barreira de Coral, que se estende por quase 2500 quilómetros e onde a ciência já conseguiu descrever mais de 9000 espécies. A Grande Barreira ocupou o espaço mediático após terem ocorrido eventos de branqueamento em massa em 1998 e 2002, algo que ocorre quando, devido ao stress térmico, os corais expulsam microalgas que lhes dão as suas cores vivas, deixando-os esbranquiçados, vulneráveis a doenças e sujeitos a condições ambientais desfavoráveis. Em 2021, um estudo demonstrou que 91% dos corais da Grande Barreira já sofreram branqueamento, tendo ocorrido já seis eventos de branqueamento em massa (quatro dos quais desde 2016).

O ano de 2023 tem sido prolífico em recordes de temperatura. Em março e abril, alguns cientistas começaram a apontar que as temperaturas médias da superfície do mar tinham ultrapassado os níveis mais elevados alguma vez registados. No verão, as temperaturas globais da superfície do mar chegaram a 0,99°C acima da média em julho de outros anos, tendo este sido o quarto mês consecutivo em que os recordes foram batido. A explicação para tal ainda não é totalmente compreendida, mas pensa-se que parte desse aquecimento se deva à evolução do El Niño no Pacífico.

Em 2019, o IPCC publicou o «Relatório Especial sobre o Oceano e a Criosfera num Clima em Mudança» (SROCC, na sigla em inglês), a primeira grande compilação de textos científicos que reconhece as formas interligadas pelas quais se espera que o oceano e a criosfera se alterem num clima progressivamente mais quente.

Uma das conclusões do relatório é que, ao longo deste século, se espera que o oceano adquira condições sem precedentes, com temperaturas mais elevadas, maior estratificação da parte superior, maior acidificação, declínio do oxigénio e alteração da produção fotossintética. Estima ainda que as ondas de calor marinhas e os eventos extremos El Niño e La Niña se tornem mais frequentes e que os eventos extremos do nível do mar, que são historicamente raros – i.e. uma vez por século no passado recente –, ocorram frequentemente – ou seja, pelo menos uma vez por ano – em muitos locais até 2050, com especial enfoque nas regiões tropicais.

Oceano e clima: uma aliança vital

É justo, pois, afirmar que o oceano tem sido determinante para a manutenção das nossas condições de habitabilidade e que permitiram a evolução da vida como a conhecemos. Importa ressalvar que todos estes “serviços” ecossistémicos de manutenção básica da vida não incluem muitos outros, como o ser fonte de proteína, água e trabalho, a sua utilização para produção de energia renovável, os seus benefícios para a saúde, bem-estar e lazer, os valores culturais e ainda a possibilitação de nos movimentarmos.

É igualmente importante referir que estas relações causais e os efeitos provocados pelas alterações climáticas no oceano coexistem com muitos outros impactos de várias ordens e que obedecem a um ritmo galopante de acumulação de efeitos. Ameaças como a sobrepesca, a destruição dos fundos marinhos, o dumping (i.e., o ato de depositar ou descartar lixo, normalmente em alto mar, de forma descuidada ou desregulada), a poluição por plásticos, químicos ou sonora, e tantos outros, contribuem, no todo, para enfraquecer a saúde do oceano e para restringir o papel de aliado que tem no combate aos efeitos das alterações climáticas.

As intrincadas interações entre o clima e o oceano estabelecem uma narrativa complexa e interligada, onde cada onda, corrente e ser vivo marinho contribui para o equilíbrio delicado do planeta que habitamos. No entanto, e apesar dos desafios urgentes, a surpreendente resiliência e a capacidade de adaptação, recuperação e restauro dos ecossistemas marinhos devem esperançar-nos e inspirar os decisores políticos a avançar decididamente com medidas de proteção do oceano e da sua biodiversidade.

A preservação do oceano transcende a esfera da escolha e do indivíduo, emergindo como uma necessidade premente que responde também a questões fundamentais ligadas à legitimidade e à justiça intergeracional.