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Entrevista a Ana Matias, da Sciaena e da Ebulição, sobre os projetos de expansão da energia eólica offshore, em alto-mar, em Portugal.
No final deste ano (2024), estava previsto o leilão para uma série de novos projetos de eólicas offshore. O leilão foi adiado, mas a verdade é que este processo vem de trás: no final de 2023, decorreu o período de avaliação destes projetos e a Sciaena, com a tua participação ativa, foi uma das entidades críticas destes projetos. Qual foi o teu envolvimento e o da Sciaena em tudo isto?
À partida, as eólicas offshore não seriam um tema em que a Sciaena entraria, dado a sua atuação ser focada na conservação marinha. E subitamente fomos puxados para esta área da energia, sem que soubéssemos necessariamente muito do assunto. E isso foi bom, pois permitiu-nos fazer outros caminhos para a parte do Clima-Oceano-Energia. É interessante, porque esta foi já uma segunda fase. A primeira foi aquando do furo [para extração de petróleo] de Aljezur e achámos que, durante vários anos, não nos íamos envolver mais na energia no mar. Mas não aconteceu, porque entretanto surgiu este assunto e achámos que fazia sentido, em coligação com outras ONG, perceber quem tinha interesse em intervir sobre isto. E, na altura, quando o Plano de Afetação das Energias Renováveis [PAER], já em 2022, foi colocado em consulta pública, percebemos que ia ter bastante impacto. Este plano era especificamente sobre energia eólica offshore e percebemos que iria ter muito impacto sobre a nossa área de interesse: a conservação marinha. Então juntámo-nos à ANP-WWF e à SPEA e à Zero.
E quais eram, então, as vossas preocupações?
As nossas preocupações, da Sciaena particularmente, têm sido muito sobre o impacto… até porque quando se começou a falar disto, falava-se da instalação de 10 GW até 2030 e agora as expetativas já estão um pouco mais ajustadas… para 2 GW. Na fase de definição dos critérios para os leilões também tentámos dar inputs. A nossa preocupação era que os critérios para os leilões se baseassem apenas em aspetos económicos, 25 a 30% dos critérios não deviam ser económicos, mas sociais e ambientais.
Quais são os principais critérios sociais e ambientais que vocês tentam que também estejam presentes nestes leilões?
Há um critério que tem sido muito usado, e do qual não discordamos, mas que achamos que não deve ser o único, que é a compatibilização dos usos dos espaços. Quem tem sido muito vocal nisto? O setor da pesca, que se tem posicionado de forma mais confrontativa com o setor da eólica offshore e com o Governo. É preciso acautelar o uso do Oceano por estas pessoas, mas, para nós, que trabalhamos em pesca há muitos anos, era preciso perceber onde são as áreas de exclusão por causa da pesca. Porque um dos grandes problemas da pesca em Portugal é a falta de dados para se saber quem é que pesca o quê e onde.
A nossa linha de base é: muita cautela. Estes são projetos que vão estar a operar durante muito tempo, é importante planear muito bem o que se está a fazer para depois não dar asneira mais para a frente. O que foi interessante, porque, por um lado, nos perguntavam porque estávamos a colocar tantas questões sobre a eólica offshore, porque é renovável e temos de descarbonizar. Por outro, recebíamos o feedback de “vocês só querem energia eólica offshore, querem acabar com a pesca”. A posição que nós assumimos, em consonância com todas as ONG que, na Europa, trabalham com este assunto é: “Sim, ninguém vai dizer que não precisamos de implementar energia eólica offshore, mas há muita coisa que tem de ser acautelada antes disso ser feito, nomeadamente a planificação dos leilões, antes disso ainda, a planificação do mar e de como vai ser utilizado.” Por exemplo, na primeira versão do PAER, não estavam excluídas por defeito áreas da Rede Natura ou áreas classificadas, o que para nós foi surpreendente. Era o caso da bacia do Sado ou uma zona da Ericeira. Na segunda versão do PAER, passaram a estar protegidas. Mas, ainda assim, há áreas que não são classificadas, mas que são importantes: corredores migratórios, zonas de alimentação, zonas com outras funções ecológicas importantes. Para nós, todos estes impactos não devem ser algo que aparece no fim da lista de preocupações, devem estar logo à cabeça – pelo menos tão importantes como todas as preocupações apresentadas pelo setor da pesca. Porque, com toda a função ecológica do Oceano no sistema climático, parece-nos importante que não continuemos a enfraquecê-lo.
Referiste as funções ecossistémicas do Oceano relativamente ao equilíbrio climático. Quais sãos os riscos, nesse aspeto? Como é que este tipo de projetos que, teoricamente, têm uma preocupação climática, podem ter o efeito oposto?
O nexo Oceano-Clima não é tão recente quanto isso. Mas, dentro da ciência climática, é bastante recente. Nos últimos dez anos tem sido mais falado e, nos últimos cinco, muito mais. Diz-se muitas vezes, mas provavelmente é preciso dizer mais: o Oceano é o nosso maior aliado contra a crise climática. O Oceano tem sido a razão pela qual a temperatura não tem aumentado tanto – e vou dizer “tanto”, porque ela tem aumentado muito. Porque ele tem uma capacidade calorífica muito grande, o que quer dizer que ele pode receber muito calor e não aumentar de forma proporcional a sua temperatura e, por conseguinte, sem aumentar a temperatura da atmosfera. Ele tem tido este efeito de tamponamento, de receber, receber, receber [calor]… mas isto não acontece a custo zero. Vão existindo alterações físico-químicas no Oceano, muitas vezes impercetíveis para nós durante muitos anos. Vamos demorar muito tempo a saber qual é a vastidão destes impactos, mas sabemos já alguns. A alteração da temperatura leva à deslocalização das espécies em direção aos polos, o que significa que comunidades, muitas vezes desfavorecidas, que dependem de um determinado tipo de pesca, podem ser afetadas. Também tem acontecido o fenómeno do branqueamento dos corais, que nos anos noventa era daquelas coisas que eram faladas, mas agora não está a acontecer menos. Cada vez têm acontecido mais estes fenómenos de branqueamento em massa e podemos pensa “ah, isso acontece nuns corais lá do outro lado do planeta”… Mais ou menos: essas zonas servem de berçário e de nidificação para várias espécies. E agora tem-se falado muito, sobretudo neste ano, do aumento da temperatura em algumas zonas específicas do Oceano. E é assustador como, este ano no Verão, todos os dias se batia um recorde novo de temperatura no Oceano, o que, para quem está atento a isto, era particularmente angustiante.
Depois, percebemos como tudo isto tem impacto não só na forma como as correntes existem dentro de água, sobretudo as correntes mais profundas. Isto depois é uma bola de neve: o que acontece é que a temperatura do Oceano aumenta; por outras razões, mas por essa também, o glaciares vão derretendo; vai diminuindo a salinidade da água, o que altera a densidade da água, o que leva a fenómenos de estratificação na própria coluna de água… Isso parece estar a desacelerar algumas correntes oceânicas. Uma delas tem sido bastante estudada – aquela de que nós dependemos mais – que é a corrente do Golfo; e há estudos que apontam para um desaceleramento muito significativo e um potencial colapso deste grande sistema de correntes que permite, por exemplo, que nós tenhamos [em Portugal] uma temperatura tão agradável. Esta questão das correntes tem-se falado mais este ano, mas eu acho que ainda não se está a dar importância suficiente a isto, porque é assustador. A grande corrente oceânica tem padrões bastante definidos e isso é o que faz com que a temperatura se movimente, porque a água mais quente vai sendo circulada; e também os nutrientes que fazem com que, em algumas zonas do planeta, exista uma acumulação preferencial de cetáceos ou uma de atum, por exemplo. Ou seja, o sistema está muito bem montado e nós aprendemos a “usá-lo” muito bem.
E há ainda outra questão, porque tudo isto se passa debaixo de água. Há ainda tudo o que acontece em cima: deslocações de massas de ar que tendem a formar, cada vez mais, fenómenos extremos, como os furacões e tempestades inesperadas. Não estou a dizer que tudo isto acontece apenas pelo aumento da temperatura no Oceano. Mas este é um sistema que, para nosso benefício, é muito inerte durante muito tempo, e é muito difícil de se movimentar, mas quando se movimenta, o resultado é maior do que a soma das partes.
Quando penso em Oceano, penso na estabilidade de clima que ele nos dá. Não é por acaso que a maior parte da população humana vive a menos de cem quilómetros do Oceano; é porque viver longe do Oceano torna mais difícil a existência, são climas mais áridos, são climas mais quentes e mais frios. O Oceano tem uma profundidade média de quatro mil metros; e há um dado que nos diz que se os dez primeiros quilómetros da atmosfera tivessem absorvido a mesma quantidade de energia que os primeiros dois quilómetros do Oceano absorveram desde os anos 70, mais ou menos, a atmosfera tinha aquecido 36 ºC. Isto também se aplica às emissões de gases com efeito de estufa, ao sequestro de carbono, porque o Oceano sequestra muito carbono, cerca de 1/3 [das emissões].
E a capacidade de sequestro de carbono também tem que ver com as plantas marinhas e com a existência de ecossistemas marinhos saudáveis. É aí que as eólicas offshore podem interferir?
O sequestro de carbono não acontece em toda a profundidade nem em toda a extensão do Oceano. Onde é que ele acontece mais? Em toda a massa de água, nos solos marinhos e em toda a biomassa que existe. Uma baleia, por exemplo, é um grande reservatório de carbono, os seres vivos são grandes reservatórios de carbono. É verdade aquilo que se diz sobre as florestas terrestres, a Amazónia, por exemplo, serem o pulmão da Terra. O outro pulmão é, sem dúvida, o Oceano. Porque a quantidade de biomassa produtiva (algas, fitoplâncton) que existe no Oceano e que está a produzir, por um lado, oxigénio e, por outro, a capturar dióxido de carbono, não é nada de desprezar. As pradarias marinhas têm sido um dos exemplos cada vez mais icónicos porque elas são, realmente, grandes reservatórios de carbono. Então quando impactamos o Oceano e acabamos com toda esta quantidade de vida estamos, na prática – além da questão ética –, a diminuir a quantidade de carbono que está retida.
Então o que tememos com a implementação de energia eólica no Oceano? Nós conhecemos os efeitos, sabemos o que estas turbinas fazem no mar. Ninguém acredita que isto vai ter impacto zero, mas a questão é garantir que não impedimos que os animais façam o que têm de fazer [para se reproduzirem]. Eu acompanho os pensamentos de quem diz que, se a ideia é, como para outras coisas, substituir a energia toda que andamos a consumir de fontes não renováveis para renováveis, então não há mar que chegue para implantar tantas eólicas offshore.
E quando falamos desta indústria, estamos a falar de alguns atores como a Repsol, que faz parte do consórcio que explora as eólicas offshore em Viana do Castelo e que está no lote dos interessados para este novo leilão…
É isso. Ficamos a pensar que isto tem um grande potencial [para a transição energética], mas vamos a conferências onde nos dizem “o futuro é renovável” e assim, mas vemos que os atores são os mesmos do passado [da indústria fóssil]. E ficamos a pensar “mas o que é que se passou aqui para, de repente, vocês estarem interessados nisto?”. Existe sempre essa desconfiança. Eu consigo defender quem acha que isto é demasiado cedo ou que não deviam ser estas empresas a fazer isto. Mas também sei que precisamos de fazer alguma coisa…
Portanto, definir se existe aqui um novo extrativismo ou não, tem mais que ver com o modelo do que com a tecnologia em si…
Diria que sim. A tecnologia é o que nós fazemos dela. Se for para continuar a consumir tudo da mesma forma, recursos vivos e não vivos, sem fazer nenhum tipo de ajuste… então poupe-se nas turbinas, não vale a pena.
Mas esta conversa se calhar fazia mais sentido há 30 anos. Agora temos tão pouco tempo e parece tudo muito pouco consequente… Se, por exemplo, fizermos zoom in nesta conversa e pensarmos que temos um Plano de Afetação de Energias Renováveis que está para sair há dois anos – e eu nem sou particularmente fã deste plano… E tudo isto que estamos aqui a falar não vai servir de nada, porque temos as metas para cumprir e as empresas querem fazer e tem-se de atrair o investimento… Ainda há dias alguém do Governo dizia “não devem haver nenhuma dúvida que vai haver energia eólica offshore em Portugal, as empresas devem vir para cá”. E uma pessoa pensa: “Claro, isto está-se a cingir a atrair as empresas…”
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Entrevista conduzida por Manuel Afonso.