Eles comem tudo e não deixam nada - neocolonialismo em Portugal hoje (I)

Texto de Andreia Galvão


“Devemos trabalhar muito para liquidar a cultura dos colonialistas das nossas cabeças, camaradas. É que, queiramos ou não, na cidade ou no mato, o colonialismo meteu-nos muitas coisas nas nossas cabeças.”

– Amílcar Cabral

Vamos lá ver. A independência oficial das antigas colónias portuguesas começou em 1973 com a luta corajosa e com a declaração unilateral de independência da República da Guiné-Bissau, que foi reconhecida pela comunidade internacional, embora não por Portugal. Esta declaração foi precedida por movimentos de libertação em Angola, UPA/FNLA e pelo MPLA (1961), na Guiné-Bissau pelo PAIGC (1961-1963) e em Moçambique pela FRELIMO. A este movimento de consciencialização e soberania que florescia em África respondeu o governo com violência e 13 anos de terrível luta entre militares portugueses e estes movimentos populares anti coloniais. Neste processo morreram milhares de pessoas, vidas foram interrompidas, ecossistemas foram brutalmente ceifados pela realidade da guerra. Mas nem a força bruta foi capaz de deter a corrente. 

O regime português, cada vez mais debilitado internamente pela luta antifascista e a insatisfação popular com o regime, sucumbiu em Abril de 1974. O povo estava com o MFA (Movimento das Forças Armadas) e os clamores por democracia popular ecoaram pelo país. Os antigos territórios portugueses em África tornaram-se Estados soberanos, com Agostinho Neto em Angola, Samora Machel em Moçambique, Luís Cabral na Guiné-Bissau, Manuel Pinto da Costa em São Tomé e Príncipe, e Aristides Pereira em Cabo Verde como chefes de Estado

Dir-se-ia que aprendemos com o passado. Mas isso seria contar apenas parte da história. Se seria justo afirmar que o projeto democrático ainda precisa de ser continuamente construído, é cada vez mais afirmado que o decolonial também. Parte da esquerda ainda não conta a história da independência de Portugal através das lutas que se travaram duramente nas antigas colónias. Não foram só cravos. Foi dor, luta, auto-organização e lideranças que assumiram a altura dos seus desafios, que permitiram que se derrubassem as antigas potências coloniais. 

Quem não pensa sobre o seu passado está condenado a repeti-lo. Já na altura da descolonização, alguns líderes anticoloniais avisaram que as revoluções não eram um propósito em si – de nada serviam se as relações de poder entre os países se mantivessem como existiam. Infelizmente, as ideias de muitos deles não singraram na política pós revolucionária. 

Dá-se o nome de neocolonialismo ao processo de dominação (não direta) política e económica pelas potências capitalistas ou ex-coloniais ocidentais, a partir do final do século XIX. Esses movimentos são muitas vezes acompanhados de um discurso humanista e de cooperação entre as antigas potências e as elites nacionais neocoloniais. 

Líderes como Thomas Sankara perderam a vida a combater o neocolonialismo. O líder do Burkina Faso tinha uma relação ambivalente com França e esperava ser tratado como um igual, como o chefe de um Estado totalmente soberano, não aceitando que o seu país fosse um mero vassalo dentro de uma relação neocolonial de dominação. Foi a sua relutância em aceitar um acordo com o FMI, em 1987, que levou a muitos problemas económicos e à perda do seu apoio político, fazendo com que França estivesse ativamente empenhada na sua remoção do poder.

Em Portugal, ainda temos dificuldade em falar de colonialismo português, embora tenhamos inaugurado o tráfico de seres humanos em grande escala. Há uma espécie de agnosticismo nacional. Quando se fala “dos mundos que Portugal deu ao mundo” reina a narrativa do “bom colonizador” (por vezes, mesmo à esquerda). Nesse enquadramento ideológico não houve oportunidade para reconfigurar estas relações entre países coloniais e outros anteriormente colonizados. Muitos autores argumentam que o papel da CPLP, nomeadamente na manutenção da língua portuguesa, tem servido como um instrumento de dominação colonial. Esta é enquadrada numa “perspetiva de desenvolvimento”, nomeadamente para compreender como este desígnio tem sido usado como instrumento de dominação no discurso português.

As políticas de alterações climáticas, especialmente as políticas de cooperação para o desenvolvimento, são terreno fértil para as antigas potências assumirem um papel missionário e retomarem a sua dominação. É o caso de protocolos de investimento que resultam no endividamento dos países do Sul Global, para implementar a infraestrutura para responder à crise climática, celebrados através de acordos exclusivos com empresas do Norte Global, não gerando riqueza para os países em desenvolvimento. Outro exemplo são os projectos de compensação de carbono, como a florestação ou a reflorestação, iniciativas através das quais as organizações (tendencialmente do Norte) replantam áreas que foram sujeitas a desflorestação ou impedem a ocorrência de desflorestação futura, a fim de diminuir a quantidade de carbono na atmosfera.

No entanto, as compensações de carbono são por vezes compradas para reivindicar uma pegada de carbono mais pequena sem reduzir verdadeiramente a quantidade de emissões de gases de efeito de estufa (GEE) produzidas. Além disso, estes projectos de reflorestação são normalmente realizados em países do Sul Global, como o Brasil e o Equador, e têm demonstrado envolver a apropriação de terras de povos indígenas, que são expulsos das suas terras de origem.

O facto de existir uma relação de poder entre o país doador (dito desenvolvido) e os países receptores de ajuda (ditos em desenvolvimento) determina muitas vezes essa subserviência. Esta relação traduz-se igualmente nas ONG, que não tendo autonomia financeira, estão dependentes de candidaturas a projetos de agências nacionais e internacionais que seguem uma lógica neocolonial e/ou assistencialista, como afirma Redy Lima.


1. Maher, Martina dos Santos. “Cooperação Para o Desenvolvimento: Uma Relação Neocolonial Entre Portugal e as Ex-Colónias Em África?” ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, 2022.


Os países em desenvolvimento têm repetidamente salientado que as nações ocidentais, que se industrializaram muito mais cedo e muitas vezes à custa do Sul Global, são responsáveis pela maior parte dos danos ambientais acumulados no planeta, pelas emissões de GEE e, por conseguinte, pelos efeitos do aquecimento global.

Por conseguinte, exigem uma compensação climática ao Ocidente mais rico, sob a forma de fundos que ajudem o Sul Global a cumprir os objectivos em matéria de emissões de GEE, a industrializar-se de acordo com métodos sustentáveis e a ter uma maior capacidade de resistência a emergências climáticas iminentes. Esta exigência é feita no contexto de reparação dos efeitos do colonialismo no desenvolvimento destas Nações e não dos modelos de endividamento que custam a soberania a muitos países pós industrializados. 

No passado, os países mais ricos prometeram apoio financeiro ao Sul Global, chegando mesmo a garantir 100 mil milhões de dólares de financiamento anual para inovações em infra estruturas. No entanto, a OCDE constatou que os países ocidentais não disponibilizaram estes fundos, continuando a exigir que todos os países se comprometam com mudanças radicais nas infraestruturas.

Muitas vezes, os países, organizações e grandes empresas do Norte instrumentalizam a incapacidade estrutural de muitos países do Sul para mitigar as alterações climáticas, de modo a autopromover-se como guardiões do humanismo e dos direitos humanos. Mas a tradição climática e ambientalista corre fundo nos países ditos em desenvolvimento. Desde as religiões animistas tradicionais africanas que acreditam que as almas e os espíritos se encontram em todas as coisas à luta pelos territórios que inspirou o movimento anticolonial. Vejamos até: Cabral politizou-se sobre a matéria da erosão dos solos. Foi a partir da análise agronómica da perspetiva cabo-verdiana que entendeu o problema da retenção das águas, não só como técnico, mas como político. No seu artigo “Em Defesa da Terra I-V” desenvolveu uma semântica militante da recuperação dos solos que fazia parte de um projeto de libertação. 

É sobre a apropriação da luta climática no Ocidente pelo pensamento neocolonial e as possibilidades de a libertar que me dedicarei nos pŕoximos artigos.