Novas Máquinas de Arquimedes - Transição

Ficção de Joana Bértholo e ilustrações de Maria Lis


A Máquina que Pintava Tudo de Verde

Naquele planeta, hoje inabitado, a espécie dominante atingira um desenvolvimento notável em todas as Escalas Cosmométricas usadas pelos especialistas em catalogar civilizações. Esta espécie tinha descoberto como transformar em energia matérias-primas existentes muito abaixo do solo, e daí advieram sociedades prósperas, com um nível de sofisticação considerável. Por outro lado, sacrificava o bem-estar da maioria para que outra parte da população, minoritária, vivesse bem e, por isso, nunca foi catalogada pelos Cosmohistoriadores junto às espécies A, consideradas Avançadas.

A sua evolução técnico-extractivista funcionou até terem desregulado vários ciclos essenciais à vida. Mesmo se tratando apenas de uma primo-Galáxia de nível IV, ainda assim eles eram dotados de um considerável quociente de inteligência e de engenho, e foram capazes de desenvolver ferramentas para sair daquele impasse. Teorizaram formas alternativas de vivência, convivência e sobrevivência; somente falharam na sua aplicação.

Num avanço civilizacional inegável — único marco consensual entre a comunidade Cosmocientífica — desenvolveram uma série de Tecnologias Epidérmicas. Os melhores cérebros-coração dirigiram-se então aos grandes umbigos da elite governante. Só que sucedia que a infraestrutura montada para perfurar o planeta tinha sido onerosa, ou seja, os caudilhos estavam preocupados com o que tinham gastado nas enormes Máquinas de Fazer Buracos. Abanaram as cabeças, que era um órgão que eles usavam no cimo do corpo e a que davam extrema importância.

Apesar de tudo, foi deixado na mão deste grupo a transição da profundidade para a superfície, porque confiaram que aqueles que mais beneficiavam do sistema instalado iriam torná-lo obsoleto. Os senhores da profundidade apresentaram novas e ambiciosas soluções assentes na transformação de forças celestiais primárias, como a solar, a eólica, e a hidráulica — só que nunca largaram as anteriores. Não reduziram, até multiplicaram.

Iniciaram também um movimento que, até hoje, muito intriga os estudiosos. Julga-se que se trate de uma prática primitivo-supersticiosa das que abundavam entre esta espécie. Eles criam no poder salvífico de uma cor (sensação visual criada por ondas de luz) a que chamavam «Verde». Era uma entidade universalmente venerada. Segundo esta sua crença, foram levados a pintar toda a Maquinaria e Complexos Industriais disponíveis: as Máquinas de Perpetuar Paradigmas Obsoletos foram pintadas de verde; as Máquinas de Produzir Pobreza Energética foram pintadas de verde; a Máquina Neocolonialista foi pintada de verde; a Máquina de Fomentar o Transporte Privado foi pintada de verde; a Máquina de Subvencionar Monoculturas foi pintada de verde; as diversas Máquinas da Obsolescência Programada foram todas pintadas de verde; a Máquina de Irrigar Campos de Golfe também foi pintada de verde; e a Máquina de Inaugurar Aeroportos foi pintada de verde — todas as Máquinas foram pintadas de verde! Continuavam a produzir as mesmas nefastas substâncias, mas agora podiam ser exibidas e celebradas. Era evidente o esforço feito para salvaguardar o futuro da espécie. Todos exultaram!

Aqueles que faziam girar a Máquina Negra eram os mesmos que se propunham agora a fazer girar a Máquina Verde, mas tudo o que fizeram foi banhá-la em tinta.

A Máquina que Não Consegue Não Mudar o Mundo

1) Acto ou efeito de passar de um lugar, de um estado ou de um assunto para outro;

2) Passagem que comporta uma transformação progressiva;

3) Evolução; Estágio intermédio num processo evolutivo.

* Uma torneira torna a custo e já não estanca. Pinga a pinga, o balde que estava vazio torna-se cheio. As pessoas arrastam os pés pela tijoleira ao passar. A ninguém ocorre que em algum momento a situação transbordará.

* Um tornado gira. Varre as moradias do bairro rico com a mesma ligeireza com que acabou de varrer as barracas do bairro pobre. Mármore e latão partilham um instante do redemoinho que paira sobre a cidade em escombros.

* A dança da rapariga torneia. Os cabelos volteiam no ar e o sorriso ilumina a imaginação dos que a contemplam. O tempo está prestes a desfazê-la da vida, mas o seu fôlego, por hora, permanece intacto.

* Um homem torna a casa. Os botões abertos da camisa deixam entrever o triângulo invertido de um escaldão. Cumpriu longas rectas em busca de palavras que o protegessem do fim. Mas a mulher não está, não esperou.

As coisas ruem. As superfícies degradam-se. Os animais abandonam lugares outrora sagrados. Os sentimentos erodem-se. Um lugar torna-se outro lugar. Um assunto torna-se outro assunto. Um tom de voz agrava-se. Alguém está irado.

A peregrinação dá lugar à autoestrada. Desapareceram aqueles que sabiam reparar os objectos danificados, e as amizades foram abaladas por uma desconfiança atmosférica. Era cada um por si, e todos contra a Mudança.

Então surgiu esta Máquina. Foi concebida para desempenhar a função única de evitar que as coisas mudem. Só lhe cumpria manter tudo exactamente como está, nunca nada de novo: o conhecido, conhecido; o reconhecido, reconhecível. Alguns chamavam-lhe «medo», outros chamavam-lhe «cobardia». Também «preguiça» ou «conformismo» eram nomes possíveis para este Mecanismo. Com as suas vigorosas gruas, as válvulas a abrir e fechar de forma incansável, e potentes freios, esta Máquina de Preservar o Status Quo não descansava um só instante. Estável, regular, previsível, segura.

Vendia-se muito bem, esta Máquina. Os que a adquiriam eram movidos por um desejo profundo de que nenhuma coisa alguma vez transitasse de estado ou viesse a ser outra coisa. Que nada tornasse, se tornasse, torneasse ou entornasse, nunca. Entropia zero.

Os governos dos países mais poderosos gastaram triliões no seu desenvolvimento, e os melhores cérebros daquele tempo dedicaram décadas da sua vida a aperfeiçoá-la, mas, por sorte, nunca ninguém conseguiu pô-la a funcionar.