Ficção de Joana Bértholo e ilustrações de Maria Lis
1) Acto ou efeito de passar de um lugar, de um estado ou de um assunto para outro;
2) Passagem que comporta uma transformação progressiva;
3) Evolução; Estágio intermédio num processo evolutivo.
* Uma torneira torna a custo e já não estanca. Pinga a pinga, o balde que estava vazio torna-se cheio. As pessoas arrastam os pés pela tijoleira ao passar. A ninguém ocorre que em algum momento a situação transbordará.
* Um tornado gira. Varre as moradias do bairro rico com a mesma ligeireza com que acabou de varrer as barracas do bairro pobre. Mármore e latão partilham um instante do redemoinho que paira sobre a cidade em escombros.
* A dança da rapariga torneia. Os cabelos volteiam no ar e o sorriso ilumina a imaginação dos que a contemplam. O tempo está prestes a desfazê-la da vida, mas o seu fôlego, por hora, permanece intacto.
* Um homem torna a casa. Os botões abertos da camisa deixam entrever o triângulo invertido de um escaldão. Cumpriu longas rectas em busca de palavras que o protegessem do fim. Mas a mulher não está, não esperou.
As coisas ruem. As superfícies degradam-se. Os animais abandonam lugares outrora sagrados. Os sentimentos erodem-se. Um lugar torna-se outro lugar. Um assunto torna-se outro assunto. Um tom de voz agrava-se. Alguém está irado.
A peregrinação dá lugar à autoestrada. Desapareceram aqueles que sabiam reparar os objectos danificados, e as amizades foram abaladas por uma desconfiança atmosférica. Era cada um por si, e todos contra a Mudança.
Então surgiu esta Máquina. Foi concebida para desempenhar a função única de evitar que as coisas mudem. Só lhe cumpria manter tudo exactamente como está, nunca nada de novo: o conhecido, conhecido; o reconhecido, reconhecível. Alguns chamavam-lhe «medo», outros chamavam-lhe «cobardia». Também «preguiça» ou «conformismo» eram nomes possíveis para este Mecanismo. Com as suas vigorosas gruas, as válvulas a abrir e fechar de forma incansável, e potentes freios, esta Máquina de Preservar o Status Quo não descansava um só instante. Estável, regular, previsível, segura.
Vendia-se muito bem, esta Máquina. Os que a adquiriam eram movidos por um desejo profundo de que nenhuma coisa alguma vez transitasse de estado ou viesse a ser outra coisa. Que nada tornasse, se tornasse, torneasse ou entornasse, nunca. Entropia zero.
Os governos dos países mais poderosos gastaram triliões no seu desenvolvimento, e os melhores cérebros daquele tempo dedicaram décadas da sua vida a aperfeiçoá-la, mas, por sorte, nunca ninguém conseguiu pô-la a funcionar.