O Mundo Sem Fim de Jean-Marc Jancovici e Christophe Blain

Recensão de Sara Figueiredo Costa


Originalmente publicado em 2022, em França, o livro que junta o engenheiro e consultor Jean-Marc Jancovici e o autor de banda desenhada Christophe Blain tornou-se rapidamente um sucesso de vendas, algo inesperado para um livro em banda desenhada sobre as alterações climáticas e a energia nuclear. O Mundo Sem Fim tem na sua vertente didáctica, e nos rasgos de humor visual de que se socorre para a desenvolver, uma característica estruturante. Aqui se explica o que é a energia, de onde se extrai e de que modos, e também a sua relação com os meios de produção, o trabalho e a criação de riqueza, numa visão cronológica que recua até à Revolução Industrial e mostra como nos tornámos dependentes da energia fóssil. À energia junta-se a crise climática, segundo grande núcleo deste livro, a que se seguirá um terceiro dedicado às chamadas energias não-carbónicas, particularmente a energia nuclear.

Apesar da clareza das explicações e dos exemplos acessíveis a um público generalista, importa ler O Mundo Sem Fim de modo crítico, sobretudo quando, na última parte do livro, é inquestionável que cada prancha é um argumento que procura convencer quem lê dos benefícios da energia nuclear, afastando os riscos como se estes fossem apenas um medo infundado, uma espécie de superstição movida a Chernobyl. Os riscos que Jancovici despreza em imagens divertidas têm o seu contra-ponto nos trabalhos de vários outros cientistas. Recentemente, em entrevista ao jornal The Guardian, o físico M.V. Ramana apontou, entre vários outros motivos para recear a multiplicação das centrais nucleares, a instabilidade do processo e o aumento do potencial desastroso de qualquer fuga ou acidente de maior dimensão pela via das próprias alterações climáticas. Cheias repentinas, aluimentos de terras e outros fenómenos meteorológicos engrandecidos pelas alterações climáticas podem surtir o mesmo efeito que a erupção daquele vulcão que Jancovici, ali pela página 150, diz ser muito pouco provável acontecer…

O Mundo Sem Fim é, então, um panfleto sobre os benefícios do nuclear para a resolução da crise climática, mas também – talvez sobretudo – uma defesa clara desta forma de energia para a continuidade de um sistema economicamente liberal, dominado pelas leis do mercado, onde haja uma reorganização dos modos de produção de modo a garantir a sobrevivência da espécie humana perante a ameaça climática, mas onde não se preconizam grandes alterações no que à riqueza e à sua concentração diz respeito. O que Jancovici apresenta, e Blain desenha, é uma panaceia para, com o mínimo de mudanças, podermos continuar a produzir e a consumir sem destruir o planeta (princípio duvidoso, tendo em conta o nuclear), mas igualmente sem destruir a ordem económica e social. Sendo que, para o autor, o que nos trouxe até este presente onde as alterações climáticas são uma ameaça foi “apenas” o uso de energias fósseis, como se esse uso não estivesse intrinsecamente relacionado com a concentração de riqueza, a predação de todos os recursos naturais, o lucro acima de qualquer direito, a injustiça social feita estrutura.

Para fazer justiça ao discurso de Jancovici, o autor não deixa de assumir que outros factores contribuíram para o estado da situação, propondo várias alterações que seriam naturalmente benéficas, mas cuja responsabilidade tem de ser política. Ora, a redução do consumo surge, aqui, como escolha individual, sendo que as pessoas que cabem nos exemplos apresentados são retratos perfeitos de uma classe média, média-alta, a quem se sugere que coma carne menos vezes por semana e prefira lojas mais próximas da cadeia de produção. Não são medidas condenáveis, naturalmente, mas a sua apresentação como panaceia para a redução do consumo global (e da produção) esconde uma realidade substancialmente mais complexa, desde logo pelo facto de boa parte do mundo não ser composta por jovens urbanos com ordenados para cima de aceitáveis e cheios de vontade de trocarem o queijo industrial pelo do produtor local, que apascenta o rebanho às portas da cidade e consegue viver de uma pequena e cuidada produção… É bom que quem pode fazer essas escolhas as faça, mas nada disso resolve as profundas injustiças sociais, nem define as escolhas políticas que poderiam mudar realmente o modo como produzimos e consumimos.

Esse é o escopo ideológico deste livro, o que não traria mal ao mundo (as ideias discutem-se, entram em conflito, rebatem-se), não fosse o pequeno detalhe de O Mundo Sem Fim surgir como expoente de uma linha de pensamento e de discurso que se esforça por parecer sem ideologia, sem política, com as consequências que são sobejamente conhecidas. Jancovici será rigoroso nos dados que apresenta, mas aquilo que escolhe destacar ou manter afastado da ribalta, e as mudanças que propõe a partir desses dados revelam uma forma de ver o mundo, tão ideológica como qualquer outra, por mais que uma certa elite de comentadores e fazedores de opinião finja que só a esquerda tem ideologia e que o neo-liberalismo é uma espécie de lei natural, tão inofensiva como a energia nuclear.

 

O Mundo Sem Fim
Jean-Marc Jancovici e Christophe Blain
Ala dos Livros
Tradução de Helena Romão