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Texto de Carla Prino
Na ótica da economia ambiental neoclássica, as alterações climáticas são consideradas externalidades negativas, isto é, um efeito colateral danoso, com impactos sobre terceiros, mas não calculado à partida. Para solucionar esta chamada “externalidade” – criada, em parte, pelo mercado financeiro -, a doutrina neoliberal propõe instrumentos financeiros baseados no comércio de carbono. Os gases de efeito de estufa (GEE) são transformados, desta forma, em ativos a favor das empresas.
Num mar de regulação sem fim, entre normas internacionais, diretivas como a DMIF I e II, e regulamentos como o MIFIR, o MAR e o EMIR, relativos aos mercados de instrumentos financeiros, os quais devem, ainda, ser conjugados com outras tantas diretivas e regulamentos, além do que ainda esteja previsto ao nível de cada Estado-membro, surgem os créditos ou as licenças de carbono. Desenhados para direcionar os mercados para o objetivo de zero emissões líquidas e transformá-los numa ferramenta de combate às alterações climáticas, o que se tem vindo a denominar de “mercados de carbono” parece não dar grandes provas de eficiência em matéria de ação climática.
No contexto internacional, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris criaram um entendimento sobre as soluções financeiras que deveriam ser implementadas, e com eles se desbravou esta ideia de desenvolvimento dos mercados de carbono, com vista a reduzir as emissões de GEE. No quadro europeu, a União Europeia (UE) foi pioneira na implementação deste mecanismo financeiro no suposto combate às alterações climática, em 2003.
Devem os mercados de carbono ser considerados políticas de combate às alterações climáticas ou trata-se, uma vez mais, de engenharia financeira para satisfazer interesses económicos?
Engenharia financeira, novas mercadorias
Os possíveis impactos das alterações climáticas nos mercados financeiros motivam a criação de mecanismos de mercado que consigam prevenir eventuais perdas financeiras e garantir a manutenção do business-as-usual. Mecanismos que sejam economicamente eficientes e que não exijam uma grande alocação de recursos operacionais e/ou financeiros. Na gíria financeira, chamam-lhe agora de princípio “cap and trade”, assente na ideia de que se deve restringir o nível de emissões de GEE através de um limite de atribuição de licenças de GEE que podem ser comercializadas – limitar, mas com a hipótese de comercializar.
No caso, partindo do impacto das alterações climáticas nos mercados financeiros, interessa antecipar riscos financeiros com o menor custo possível. O objetivo de reduzir as emissões de GEE está identificado, mas não parece ser essa a principal motivação. A criação dos instrumentos financeiros previstos nos mercados de carbono parece ir além do nobre objetivo de combater as alterações climáticas. Objetivos que parecem pouco determinados e transparentes, na concepção de um mercado que indicia uma manobra de engenharia pensada para gerar receitas adicionais e valorizar o chamado capital natural. Uma manobra imbuída de interesses financeiros e económicos.
Seguindo a lógica da economia comportamental, pretende-se aqui fomentar a adopção de boas práticas ambientais por parte dos agentes financeiros, acreditando-se que a existência do mercado de carbono funciona como um incentivo financeiro para que se escolha investir e consumir de forma mais “verde”. Por outras palavras, uma “arquitectura” de escolha baseada na ideia de que o mercado é uma instituição civilizada incumbida de “empurrar”1 rumo à decisão acertada, a tal que permitirá a mudança. No caso, a mudança para o que se designa de Economia Verde, com menos emissões e com mais produção de tecnologia verde.
1. O denominado efeito nudge, explorado por autores como Richard Thaler e Cass Sunstein.
No âmbito desta designada Economia Verde, o carbono surge como um ativo, tem um preço e é passível de ser transacionado no mercado financeiro. É possível que o carbono se torne uma mercadoria mais valiosa que o próprio petróleo. Atualmente, estima-se que sejam transaccionadas 3 mil milhões de toneladas por dia. Como descarbonizar a economia num cenário que valoriza a existência de carbono? E onde se inserem as toneladas de carbono emitidas em guerras, como a perpetuada por Israel?
A engenharia financeira parece favorecer a expansão do mercado, deixando dúvidas sobre o impacto do desempenho do mercado financeiro no que se quer que seja um combate real às alterações climáticas e não uma mera performance para ocultar interesses económicos, numa agenda dedicada ao aumento de liquidez dos mercados financeiros.
Mais um instrumento financeiro para expandir o mercado
Estão previstas duas formas de organização de mercado no que toca às operações financeiras envolvendo carbono, ou seja, relacionadas com a redução de emissões de GEE – o mercado regulado e o mercado voluntário.
O mercado regulado de carbono é gerido por governos. A União Europeia tem o maior, mais antigo e mais conhecido, o Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE), supervisionado pela Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados. Este mecanismo, defendido como a pedra angular da estratégia de combate às alterações climáticas da UE, aplica-se nos seus Estados-membros, na Islândia, no Listenstaine, na Noruega e na Irlanda do Norte (através de um protocolo específico). Abrange instalações e operadores dos setores da produção de eletricidade e calor, da indústria transformadora, da aviação e do transporte marítimo, cobrindo anualmente cerca de 1000 milhões de toneladas de emissões de GEE. Este mecanismo consiste na criação de incentivos económicos para que as grandes empresas cortem nos GEE que emitem.
A UE estabelece um limite de emissões por ano, sujeitando os setores a auditorias, e emite licenças de carbono (a título gratuito, na sua maioria) conforme o limite identificado. Para 2024, a Comissão Europeia decidiu-se pela emissão de 1 386 051 745 licenças. A cada licença corresponde o “direito” a produzir o equivalente a uma tonelada de dióxido de carbono. Se os operadores de mercado excederem os limites, serão sancionados, sendo que podem sempre recorrer à compra de licenças a outros operadores que tenham “excesso” de licenças face ao que eventualmente tenham produzido: licença para continuar a poluir. Estima-se que o impacto na redução das emissões ronde 1000 milhões de toneladas por ano, desde a criação do CELE.
Esta é uma prática de mercado que se está a tornar cada vez mais presente, com o caso da UE a ser entendido como uma experiência de sucesso a ser replicada por vários países. O comércio de licenças de emissão é visto como um mecanismo político de resposta às alterações climáticas eficiente e dos mais fáceis de implementar, quando comparado com as taxas de carbono, por exemplo. São soluções do mercado livre geridas por governos, assentes na lógica de que quem polui deve pagar pela poluição que produz – princípio do poluidor-pagador.
Por sua vez, o chamado mercado voluntário de carbono insere-se numa lógica internacional do mercado e atua por setor. Aqui, valem os créditos de carbono ou de compensação. Este mercado depende da ação voluntária e tem crescido consideravelmente nos últimos anos. As empresas adquirem créditos de carbono para apoiar “reivindicações de compensação”, ou seja, possíveis ações futuras de eliminação de emissões de GEE; ou “reivindicações de impacto”, em forma de apoio a projetos de redução de emissões de GEE. O exemplo mais representativo destes mercados consiste na plantação de árvores para compensar as emissões produzidas – a floresta é entendida como um instrumento de sequestro de carbono. Também se pode incluir aqui a redução de GEE com recurso a tecnologia de captura e armazenamento. Calcula-se, então, a potencial absorção de carbono conseguida com essa florestação, por exemplo, e transforma-se essa absorção em créditos de carbono. Em Portugal, este mercado ganhou forma com o Decreto-Lei n.º 4/2024, de 5 de janeiro, que se encontra em implementação, sem grandes concretizações quanto à forma como se pretende operacionalizar este mercado.
O mercado voluntário é criticado por representar ativos de liquidez duvidosa e de caráter intangível. Fora do controlo da regulamentação, o volume de créditos é tão grande que parece superar os recursos existentes no planeta, aparentando tratar-se de uma mercadoria que pode ser fornecida de forma infinita. Tratado como um recurso infinito num planeta finito, seguindo o que parece ser a lógica do capitalismo fóssil.
Greenwashing?
O Acordo de Paris estabelece o objetivo da redução de emissões de GEE. Tal significaria que, no caso do mercado voluntário de carbono, o volume de créditos de carbono teria tendência para baixar ou, pelo menos, estagnar, e não para aumentar. Que ainda existam créditos de carbono disponíveis para serem usados como compensação soa a alerta, num mercado que duplicou nos últimos anos, tal é a procura. Um modelo de mercado, relembre-se, não regulado e sem mecanismos de controlo eficazes, com vários problemas já identificados no que toca à utilização da tecnologia para a contabilização dos GEE e à localização dos projetos de suposta compensação.
Fala-se de grandes perdas económicas e financeiras e de como a crise climática pode levar ao colapso da economia global. No final, a economia é que precisa de ser salva e os mercados de carbono aí estão para a salvar, de forma dissimulada e recorrendo ao que parece ser mais uma artimanha para permitir que o capital fóssil continue a emitir GEE.
A crise climática é um problema estrutural cuja resolução não pode depender de manobras de diversão à volta do comércio de carbono. As políticas públicas devem ser desenhadas para desenvolver medidas concretas de combate às alterações climáticas, focadas numa efetiva redução de emissões e na mudança estrutural do modelo de produção. Para isso, urge que os Estados recuperem o controlo sobre os setores estruturais da economia, de forma a conseguirem delinear um plano estratégico em que consigam intervir, ao invés de atuarem como meros observadores reguladores. O caminho tem de passar pelo Ecossocialismo.