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Texto de Pedro Viegas
Dada a profusão de eventos climáticos extremos em 2024, exacerbados pelo aumento da temperatura global, é cada vez mais evidente a necessidade de cortar emissões de gases de efeito de estufa (GEE). De facto, os furacões Helene e Milton, as grandes cheias na Ásia, na Europa e em África, os fogos na Amazónia, as ondas de calor, os incêndios florestais em Portugal em setembro e a depressão isolada em níveis altos (DINA ou DANA) que atingiu recentemente a Costa Leste da Península Ibérica são eventos só de 2024, entre tantos outros, que foram tornados mais prováveis e perigosos pelas alterações climáticas induzidas pelo aumento da concentração de GEE na atmosfera, e que fizeram milhares de vítimas. As consequências nefastas do aquecimento global são cada vez mais próximas e palpáveis também em Portugal. Face a isso, quais as mais recentes propostas do Governo português para cortar emissões? Neste passado mês de outubro, o Governo apresentou os planos “Descarbonizar para Crescer” e “Pacote Mobilidade Verde”.
O plano “Descarbonizar para Crescer” anuncia uma série de orientações com pouca concretização e eficácia. Promete seguir um princípio de pôr as “pessoas no centro da decisão” sem propor qualquer forma de controlo democrático popular. Revê o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030), ajustando ligeiramente as suas metas, mas sem o investimento público necessário para acabar definitivamente com as emissões no setor da energia. Entre outras coisas, propõe pequenas alterações aos processos de licenciamento de energias renováveis, à contratação de venda e aquisição de energia e ao comércio de licenças de emissão de GEE. Para descarbonizar a economia, autoriza o Fundo Ambiental a gastar 14 M€ por ano para estimular a produção de biometano e hidrogénio verde, propõe benefícios para setores industriais com elevado consumo de energia elétrica (consumidor eletrointensivo) e que, em 2026, o Fundo Ambiental gaste 40 M€ para apoiar a produção de combustíveis sustentáveis para aviação (SAFs). Tudo propostas que, mesmo tendo benefícios, por si só não cortam emissões, e que, portanto, têm subjacente o apoio, não à transição, mas à expansão de setores poluentes, como a aviação, que não para de ver o número de voos a aumentar.
O “Pacote Mobilidade Verde” é, à partida mais interessante, na medida em que se propõe promover a descarbonização dos transportes através da transferência de passageiros para o transporte público, da sua digitalização e interoperabilidade, do incentivo ao transporte ferroviário de mercadorias e do desenvolvimento de logística urbana sustentável. Há bons motivos para destacar o setor dos transportes na descarbonização, dado que é o que mais GEE emite em Portugal, 30% do total. Estas emissões devem-se não só aos tráfegos aéreo e marítimo, que têm vindo a aumentar em Portugal devido ao turismo, mas sobretudo ao transporte terrestre, quer de mercadorias, altamente dependente da rodovia, quer de passageiros, onde permanece a dependência do automóvel individual. A justiça climática exige transportes movidos de forma sustentável, acessíveis e cujo custo não exclua ninguém, que sirvam bem toda a gente, que criem emprego qualificado e com direitos, que permitam tornar dispensável o carro individual e avançar para uma sociedade e uma economia livres de combustíveis fósseis. No entanto, o conteúdo do “Pacote Mobilidade Verde” é uma desilusão pois, longe desta visão, nem aloca o investimento público necessário a tornar os seus próprios objetivos realidade.
De positivo, atribuem-se 3 M€ ao apoio à mobilidade ativa, pretendendo acelerar a construção de ciclovias. Alarga-se a cobertura social e geográfica do Passe Social+ e o passe jovem gratuito a não estudantes. Embora se apresentem os custos respetivos de 17 M€/ano e 40 M€/ano, estes valores deverão servir para compensar as empresas de transportes, mas não para investir de facto numa maior rede de transportes, necessária para acomodar o pretendido acréscimo de passageiros com rapidez, conforto, frequência e abrangência geográfica. São alocados 10 M€ para o Fundo para o Serviço Público de Transportes, um valor largamente insuficiente para o propósito de apoiar a descarbonização, a digitalização, a comunicação aos passageiros e a promoção da mobilidade verde. Por comparação, são atribuídos 20 M€ para apoiar a aquisição de veículos elétricos, com destaque para os ligeiros de passageiros, ou seja, os carros.
Há, portanto, uma opção clara pelo transporte individual, muito mais poluente mesmo sendo elétrico, em detrimento do coletivo. Está também implícita uma política socialmente regressiva de usar o dinheiro público em benefício de quem pode comprar um carro elétrico. No que toca aos transportes de mercadorias, para além de medidas com pequenos apoios técnicos, o que sobressai é o apoio ao transporte ferroviário de mercadorias, ao compensar os operadores ferroviários de mercadorias em 9 M€/ano para evitar custos externos. Este apoio parece ser largamente insuficiente e é duvidoso que faça diferença na escolha do meio de transporte de mercadorias. O que faria de facto diferença seria ter transporte ferroviário de mercadorias mais rápido que o rodoviário e uma rede o mais abrangente possível, para levar as mercadorias perto do destino final.
Passe Ferroviário Verde
Mas a medida mais emblemática do “Pacote Mobilidade Verde”, e também a mais demonstrativa da insuficiência de investimento público, é a proposta de Passe Ferroviário Verde. Este dará acesso a comboios Intercidades, Regionais, Inter-regionais e Urbanos de Coimbra, Lisboa e Porto fora da área abrangida por passes intermodais metropolitanos, por 20 €/mês por passageiro. Portanto, um acesso mais alargado a um preço inferior que o anterior passe ferroviário nacional, que dava acesso aos comboios regionais por 49 €/mês por passageiro. A proposta de Passe Ferroviário Verde estima a abrangência de quase 30 milhões de passageiros por ano e, no entanto, estabelece uma compensação à Comboios de Portugal (CP) de apenas 18,9 M€/ano, menos de 1€ por passageiro.
A maior acessibilidade financeira aos transportes públicos e o incentivo ao transporte ferroviário são obviamente bem-vindos. No entanto, só haverá de facto mais passageiros na ferrovia e estes só serão bem servidos se houver uma mudança estrutural na ferrovia que aumente a oferta de serviços. O “Pacote Mobilidade Verde” não contempla essa mudança. Para isso, teria de investir na velocidade, frequência, conforto e abrangência dos comboios, através da ativação de linhas desativadas, da modernização de linhas velhas, da extensão da rede ferroviária, do aumento do número de comboios e ligações, incluindo os comboios noturnos e as ligações ao Estado espanhol, investindo também no conforto dos passageiros nas bilheteiras, estações, bares e comboios e, sobretudo, na contratação, formação e valorização dos trabalhadores que tornam tudo isso possível.
Como o “Pacote Mobilidade Verde” surge separado do Plano Ferroviário Nacional do anterior Governo, insuficiente mas com medidas positivas de aumento da oferta na ferrovia, que parece ainda não ter a aprovação e compromisso do novo Governo, devemos concluir que os planos do novo governo não passam por um investimento na ferrovia que tornem o comboio o meio de transporte preferencial. Pelo contrário, sem investimento e com uma baixa compensação à CP, o que é expectável é que o aumento da procura induzido pelo Passe Ferroviário Verde (que por si só seria positivo) leve a comboios mais cheios, a uma diminuição da qualidade do serviço e a piores condições para utentes e trabalhadores.
A CP já está minada por material e infraestruturas obsoletas, falta de apoio nas oficinas e falta de pessoal, com enorme dificuldade nas contratações devida aos baixos salários e ao elevado custo de vida (estando mesmo a voltar a empregar trabalhadores reformados). Estes constrangimentos já são motivo de inúmeros atrasos e problemas estruturais. Com o Passe Ferroviário Verde, é expetável que a CP perca parte das fontes de receita dos comboios de longo curso (88 M€/ano), que têm preços por bilhete comparáveis aos do passe, em troca de apenas 19 M€/ano de compensação, o que resultará num pior serviço, como denunciou a Comissão de Trabalhadores da empresa.
O ataque ao serviço público ferroviário
Quanto pior for o serviço da CP, mais difícil será substituir viagens de carro e de avião pelo transporte menos poluente, o comboio. Para além disso, é garantido o florescimento das empresas privadas rodoviárias, que já têm o monopólio do transporte coletivo nas regiões que deixaram de ter transporte ferroviário.
Assim sendo, a proposta do Passe Ferroviário Verde é coerente com a intervenção do Ministro Miguel Pinto Luz, impedindo a CP de comprar os comboios previstos para operar nas novas linhas de Alta Velocidade, assumidamente para encolher a CP e abrir espaço às empresas privadas (que não existem nem têm material circulante). O objetivo do governo é degradar o serviço público, neste caso a CP, para justificar o seu desmembramento e criar mercado para as empresas privadas, seja qual for o meio de transporte.
Com o possível enfraquecimento da CP, ficam a ganhar as possíveis concessionárias ou concorrentes ferroviárias, mas também os capitalistas da aviação, dos setores automóvel e rodoviário, dos combustíveis fósseis, das baterias de lítio e de setores adjacentes. No capitalismo, o Estado serve a classe dominante, e as contradições inerentes à proposta do Passe Ferroviário Verde são exemplo disso e da incapacidade do capitalismo atacar a crise climática com a rapidez, eficácia e justiça necessárias. Enquanto as decisões sobre a nossa vida coletiva forem tomadas de forma a assegurar o lucro das grandes empresas, a descarbonização será lenta e ineficaz, e setores da classe trabalhadora terão o acesso dificultado ou impossibilitado a serviços básicos, como os transportes. Só o monopólio público do setor dos transportes coletivos, sob controlo democrático de utentes e trabalhadores e com recurso às enormes riquezas sociais, pode garantir o investimento necessário à descarbonização atempada do setor dos transportes e ao acesso universal à mobilidade com qualidade.
Todos a Bordo
Trabalhadores, utentes e ativistas, temos todos de lutar por uma mobilidade limpa para todos, por quem nela trabalha, pelo clima e pela acessibilidade. Esta implica um investimento infraestrutural de grandes dimensões, tendo como eixo a ferrovia e os seus trabalhadores, mas englobando os transportes públicos limpos no seu todo.
Em vez dos planos do governo, precisamos de um verdadeiro Passe Nacional Multimodal sustentável, acessível e assente em investimento público na ferrovia. Este deve incluir a ferrovia em articulação com as redes locais e regionais de transportes públicos (ferrovia, metropolitanos, rodoviários, bicicletas partilhadas públicas e afins), em vez de separar o passe ferroviário dos passes metropolitanos. Deve ser acompanhado do investimento em material circulante, em infraestruturas e na contratação de trabalhadores com carreiras e condições laborais dignas e atrativas. A sustentabilidade financeira das empresas públicas de transporte não pode ser colocada em causa, antes assegurada para viabilizar esta medida. Só assim um Passe Nacional pode significar um avanço justo no direito à mobilidade limpa para todos.
Para que o direito à mobilidade não obrigue a ter automóvel, temos de garantir a acessibilidade à rede de transportes públicos regulares (ferroviário, rodoviário) e a pedido para toda a população no conjunto do território, assegurando tempos de viagem para os principais pontos de residência, trabalho, serviços e lazer comparáveis com os do transporte individual. Para tal, são necessárias carreiras com horários frequentes, regulares e fiáveis e redes de vias dedicadas para transporte público rodoviário em zonas congestionadas.
Também temos de garantir que a mobilidade está ao serviço de uma transição justa, investindo num plano de eletrificação de transportes a partir de fontes limpas. Eletrificar todas as linhas ferroviárias, o transporte terrestre de mercadorias e substituir as frotas rodoviárias por outras não poluentes. Para os empregos criados por este plano, garantir a contratação de trabalhadores provenientes das indústrias fósseis, que é necessário encerrar faseadamente, sem perda de salário e direitos laborais, envolvendo as organizações representativas dos trabalhadores nesta transição.