Entrevista a Kaya Schwemmlein do movimento Juntos pelo Cercal
Em que consiste o projeto da central fotovoltaica do Cercal do Alentejo?
O projeto engloba uma central fotovoltaica, a que se soma uma linha de muito alta tensão entre o Cercal e Sines, com uma extensão de 26 km. A área total de impacto é contestada. Os dados da promotora indicam um impacto direto de 394,74 hectares e um impacto total de quase 600 hectares. Mas o movimento Juntos pelo Cercal (JpC) estima entre 800 e 1320 hectares.
O que é que torna o Cercal e outras localidades de Santiago do Cacém tão atrativas para projetos de energias renováveis?
O próprio estudo de impacto ambiental revela que as áreas do Cercal foram escolhidas pelo preço dos terrenos. E também pela concentração de terra num número reduzido de proprietários.
Igualmente problemático é o projeto da maior central fotovoltaica da Europa, a central Fernando Pessoa, localizada em São Domingos e Vale de Água, também no concelho de Santiago do Cacém. Portanto, teremos uma das maiores centrais fotovoltaicas do mundo muito próxima desta do Cercal. O que o projeto da central fotovoltaica Fernando Pessoa tem de muito peculiar é que foi aprovado pelo presidente da Agência Portuguesa do Ambiente e não pela diretora do departamento de estudos de impacto ambiental, que deu um parecer negativo a este projeto.
Além disso, de acordo com os nossos cálculos, a dimensão do projeto de São Domingos e Vale de Água é contestada. Nós achamos que não cabe na área estipulada pelos promotores, será necessariamente maior. O JpC estima que a área total do projeto Fernando Pessoa será, no mínimo, 2000 hectares. Aqui, tal como no caso do Cercal, ainda podem ser adicionados sem estudo de impacto ambiental mais 20%, portanto, mais uns 250 hectares. Este é o primeiro aspeto que denunciamos: a dimensão dos projetos. Depois é, obviamente, o modo como estão a ser conduzidos e quem irá beneficiar deles.
Como é que o projeto do Cercal do Alentejo foi apresentado à população?
Foi num contexto muito particular, em que havia uma consulta pública em curso, mas a população não sabia, não foi informada atempadamente. Houve uma sessão na Junta de Freguesia, organizada pela empresa promotora e pelo município. O projeto foi anunciado dois dias úteis antes do término da consulta pública no portal Participa. Mesmo assim, a reunião foi muito participada, e houve pessoas que filmaram o modo como estavam a ser tratados e a indignação da população.
Foi na sequência dessa sessão que se constituiu o movimento JpC? Quais são os seus objetivos?
Sim. É um movimento de cidadãos, de pessoas preocupadas com o território e que se opõem ao projeto da central fotovoltaica. O JpC assenta na resistência contra este projeto. Mais tarde, alargou-se a outras causas, por exemplo, a luta contra a mineração, e começou-se a juntar a outros movimentos também no litoral alentejano.
Quais são as principais sensibilidades das pessoas que compõem o JpC e os motivos pelos quais aderiram ao movimento?
Acho que, em primeiro lugar, foi mesmo uma questão de defesa do território. Obviamente que este movimento é constituído por diversas pessoas de setores diferentes. Temos os pequenos e médios empresários, principalmente ligados ao turismo, que investiram tudo o que têm num turismo rural. Temos também os agricultores de montado, que se veem confrontados com projetos que poderão alterar significativamente as temperaturas locais, e sabemos que o sobreiro está cada vez mais ameaçado pelo aumento da temperatura. E depois os residentes do Cercal do Alentejo, tal como eu, que simplesmente acharam o processo injusto, inadequado ao território. Temos os ativistas locais. Temos os residentes que se opõem a este tipo de desenvolvimento, mas que muitas vezes não expressam o seu descontentamento, porque já estão habituados a serem sempre contrariados. E, no fundo, a sensação que uma pessoa tem quando fala com os residentes do Cercal do Alentejo é de um descontentamento transversal. No entanto, não é fácil irmos contra um projeto desta escala, quando a empresa promotora tem os melhores advogados, as melhores conexões políticas. Nós somos, como já muitas vezes dito, até pela empresa promotora, “meia dúzia de ativistas”. Há muita gente que tem baixado os braços para a luta porque não vê futuro na luta. A luta é difícil.
E o movimento sofreu com essas tentativas de descredibilização e de silenciamento? No início havia mais ímpeto que agora se está a perder?
Não. Eu acho que, se calhar, há uma transformação. Não é um decréscimo, porque a resistência existe. E não existe só na forma de “vamos à manifestação e vamos fazer notícias”. Eu acho que existe uma resistência por parte das pessoas locais no quotidiano; todos os dias que estes agricultores continuam a fazer o seu trabalho, todos os dias que continuam a tentar ter um ordenado, uma vida decente, a querer continuar a viver nos campos, a querer continuar a viver no Alentejo. Não existe um enfraquecimento da luta. Existe, sim, uma transformação.
Voltando aos repertórios de ação coletiva, como é que o JpC tem travado estas batalhas?
Começámos pelo esclarecimento à população, porque a informação é totalmente opaca e técnica e impossível de aceder para o cidadão comum. Procurámos esgotar todas as ferramentas legais que tínhamos à disposição. Tentámos impugnar a decisão da Declaração de Impacto Ambiental da APA. Fomos recebidos pelo Ministério do Ambiente e da Ação Climática. Tentámos sempre participar em consultas públicas, encorajar a participação da população não só nos projetos relacionados com o Cercal, mas também noutros projetos extrativistas. Tentámos também fazer uma queixa ao Banco Central de Investimento Europeu pelo seu papel no financiamento de vários projetos extrativistas. Constituímo-nos ainda como assistentes no processo Influencer.
Procurámos construir pontes com a academia. E construímos pontes com outros movimentos, porque percebemos que a batalha é tangente a muitas causas. E acho que há cada vez mais pessoas a quererem juntar-se à batalha porque estão a perceber os efeitos cumulativos de toda esta artificialização de um território.
A população local tem sido ouvida durante os processos de consulta pública?
Essa pergunta é complexa. Temos conseguido chamar a atenção da comunicação social, temos bastante cobertura mediática. A opinião pública sabe da nossa batalha. No entanto, acho que não estamos a ser ouvidos pelas pessoas que importam. Porque, apesar de poder haver uma posição de rejeição do projeto por parte da população, mesmo assim parece que as coisas não funcionam. Por exemplo, temos a impugnação do Ministério Público sobre a central fotovoltaica Fernando Pessoa. Irá acontecer alguma coisa relativamente a isso? Eu não sei.
Depois de toda a análise das opiniões políticas e depois de ouvir os promotores a divulgarem intenções de fazer x e y, entende-se que o projeto já está decidido. Foi decidido há muito em ambiente fechado. Não há uma participação efetiva por parte das pessoas. A Convenção de Aarhus afirma que os cidadãos devem participar em questões relacionadas com a execução de políticas ambientais. Não está a acontecer. Não só não estamos a ser incluídos, como estamos a ser excluídos. Diretamente, pela exclusão devido ao facto de sermos rurais, pobres e não sermos peritos na matéria. Indiretamente, pela dificuldade de acesso; a participação é online, o que exclui, à partida, grande parte da população local, que é idosa e não tem sequer acesso a este tipo de equipamentos.
Qual é a ligação destes projetos de produção de energia renovável com a reconfiguração industrial do polo de Sines?
Sines apresenta um crescimento que penso que não acontecia desde a implementação da Zona Industrial, nos anos 1970, que foi um projeto ainda dos últimos anos do Estado Novo. Já na sua construção, o complexo era contestado por parte da população local, que foi sempre contra o projeto, devido à expropriação de terras, que até hoje não foram devolvidas. Existem imensas áreas desocupadas, imensas terras agrícolas que podiam ser utilizadas, que o Estado simplesmente reserva para futuros desenvolvimentos. Portanto, só em disponibilidade de espaço, Sines tem bastante potencial para continuar a crescer em termos de indústria.
Esses planos de expansão decorrem da materialização das políticas de transição energética da União Europeia, nomeadamente da pressão para o desenvolvimento de novas fontes de energia verde, como o hidrogénio. E a digitalização requer também centros de dados que, para serem sustentáveis, têm de ser alimentados por energias verdes. Não uso o termo renovável, porque não há nenhuma fonte de energia completamente renovável – os recursos são sempre finitos.
Destacam-se ainda os planos para a expansão do complexo petroquímico e para as fábricas de baterias de lítio. Trata-se de um conglomerado industrial de empresas transnacionais, bancos de investimento, fundos de investimento, como por exemplo a Aquila Capital, a Iberdrola, a Prosália. Estimamos que, apenas a construção do centro de dados se traduzirá em necessidades energéticas quatro a seis vezes superiores às do complexo de Sines na sua totalidade, relativamente aos números de 2021. Portanto, temos uma intensificação energética colossal que, mais uma vez, justifica a necessidade destes projetos de renováveis extensivos de grande escala. Esta febre, esta corrida pelos gigawatts de energia renovável que, no fundo, satisfaz mercados estrangeiros e assenta numa lógica de descarbonização sem nexo com o território. Baseada em supostas boas intenções, mas que, na verdade, desmascara os paradoxos das políticas europeias.
A que outros movimentos é que o JpC se tem vindo a aliar? E o que motivou essa articulação?
A nossa primeira sinergia foi com o movimento Proteger Alentejo, que é a associação que se opõe à central fotovoltaica Fernando Pessoa. Em ambos os casos, são empresas transnacionais que estão no território. Existe aqui uma espécie de captura de recursos locais, comuns. As centrais serão implementadas em zonas de Reserva Agrícola Nacional (Cercal) e Reserva Ecológica Nacional (Fernando Pessoa).
Começámos também a articular-nos com o Juntos Vamos Salvar os Sobreiros, que é um movimento formado recentemente e que se opõe ao abate de 1821 sobreiros, devido ao projeto do parque eólico de Morgavel. A desflorestação é outro dos impactos que nos preocupa. Temos, só da central Fernando Pessoa, um abate de 1,5 milhões de árvores.
O que nasceu como um movimento local de oposição transformou-se numa rede – Tirem as Mãos do Litoral Alentejano –, que agrega coletivos com uma visão alternativa para o futuro do território. Qual é o diagnóstico que as organizações que integram esta rede Tirem as Mãos do Litoral Alentejano fazem em relação à transição energética em curso?
Convivem aqui várias dinâmicas extrativistas em simultâneo. Esse extrativismo é multiforme, diz respeito não só à energia, mas também à agricultura e à indústria. Falamos, por um lado, da artificialização por via das centrais fotovoltaicas e, por outro lado, noutras zonas, da artificialização por via de estufas e das monoculturas de abacate ou de eucalipto. Existe um modelo industrial, energético e agrícola que vê esta região como um território para extrair e capturar.
Todas essas causas estão reunidas no coletivo Tirem as Mãos do Litoral Alentejano, que está ancorado na luta pela justiça e pelo poder de decisão das pessoas rurais sobre o seu território. Esta rede agrega movimentos que estão a lutar contra, por exemplo, a indústria agroalimentar, que se está a desenvolver em regime intensivo e superintensivo, principalmente na zona de Odemira. Temos pessoas que lutam, como a plataforma Dunas Livres, contra a indústria do turismo de luxo entre Troia e Melides. Temos também pessoas que acusam a indústria do eucalipto e denunciam a sua relação com os fogos que acontecem todos os anos. Há ainda a luta contra a mineração já existente, nomeadamente em Neves Corvo, que é uma das maiores minas da Europa. Apesar de estar suspensa há anos, a mina de Caveira, de acordo com um estudo realizado em 2024, acusa ainda valores elevados e extremamente elevados de arsénio, chumbo e mercúrio. Então estamos a ver um território em que alguns dos efeitos colaterais na saúde, nos ecossistemas e nos recursos naturais de projetos extrativistas passados estão a vir agora ao de cima. E como será com os novos projetos? Portanto, vivemos num território em risco e sacrificado. Não é só o território que é sacrificado, as pessoas também. E porquê? Porque os terrenos eram baratos. Então quer dizer que as pessoas, só por serem pobres, podem ser sacrificadas?
Na vossa leitura, este sacrifício é em nome de quê e para benefício de quem?
A dada altura, começámos a questionar: “mas isto vem de onde? Isto é para alimentar a população? Esta energia é para quê?” Não somos uma zona que consome muita energia, portanto, isto é para quê? Começámos a pensar e começámos a perceber que realmente existiam necessidades energéticas derivadas da intensificação do complexo de Sines e de certos planos associados à transição energética, por exemplo, a indústria “verde” ligada ao hidrogénio, à amónia, ao centro de dados ou à fábrica de baterias de lítio.
Existe todo um conjunto de atividades industriais planeadas para Sines que requerem uma enorme quantidade de energia que deve ser produzida, obviamente, por meios verdes. E esses meios verdes não existem sem ser por via de parques eólicos e fotovoltaicos. Esses projetos, supostamente, irão satisfazer a procura energética de Sines, o que nos suscita dúvidas. Isso só será possível se, por exemplo, forem também instaladas as eólicas offshore.
A questão central que deve ser sublinhada é a transição, que, só por ser “verde”, não deve ser seguida cegamente. O que nós vemos no litoral alentejano é a ponta do icebergue de um desenvolvimento capitalista neoliberal focado no enriquecimento de uma classe hegemónica, que deriva de políticas neoliberais que contaminam a governança ambiental, e de uma corrida sem critérios aos bens comuns, numa região onde o latifúndio ainda é habitual e onde o ordenamento do território falhou.
Toda a região está muitíssimo dependente do complexo industrial de Sines. É muito provável que quem vive em Sines ou nas áreas limítrofes queira que Sines continue e prospere, porque disso depende a sua subsistência. Como é que a população se está a posicionar?
Temos a população um pouco dividida, porque o facto é que muitas pessoas trabalham em Sines. Sines, além de Odemira, é um dos municípios cuja população, desde os anos 1970, mais tem crescido. É um dos municípios que atrai pessoas de fora e oferece empregos qualificados e não qualificados. Mas a narrativa do emprego é complexa. Sines tem mais emprego porque houve, simultaneamente, um desinvestimento em sectores como a agricultura, pesca e floresta, que antes empregavam muita gente na zona. Antes da construção do complexo industrial, os municípios vizinhos, como Santiago do Cacém, eram muito mais habitados. A população está dividida porque, embora seja um polo de concentração de emprego, a população entende este tipo de paradoxos: acho que ninguém quer que o seu emprego seja a causa da destruição da zona onde vive. Como é que nós conseguimos compatibilizar as duas coisas? Como é que conseguimos criar emprego, mas emprego que seja sustentável e, de facto, verde? Porque, por exemplo, se nós formos avaliar só o projeto do Cercal, a narrativa é a de que serão criados alguns postos de trabalho. Mas nós sabemos que, neste caso específico, só serão criados quatro empregos permanentes.
E os empregos relacionados com o turismo ou cortiça e alguns informais, como por exemplo a lenha ou a ida aos cogumelos? Essas questões não são abordadas. Portanto, no fundo, não é um balanço assim tão fácil. Quanto emprego é que Sines cria? E quantos empregos é que foram à vida pelo foco unilateral no desenvolvimento da indústria na zona? Se olharmos para os números de residentes, o litoral alentejano, antes do complexo de Sines, tinha mais residentes do que hoje.
Qual é a visão tanto do movimento JpC, mas também da rede Tirem as Mãos do Litoral Alentejano, do que constitui uma transição energética socialmente justa?
Para já, é voltar a incluir as pessoas que, tendencialmente, são politicamente marginalizadas – os sujeitos rurais –, que pouco ou nada contribuem para as alterações climáticas e são os primeiros a serem sacrificados em nome das políticas de mitigação das alterações climáticas. E não é uma inclusão a posteriori, e não é uma questão de mandar as universidades estudar o território, fazer turismo académico, voltarem para o laboratório e continuarem a fazer estudos isolados sobre a questão. Não tem nada que ver com isso: é uma inclusão a vários níveis – municipal, regional e nacional – da população local. E a população local não envolve só um setor; é uma participação horizontal, o que requer uma vontade política de realmente efetivar uma transição para as pessoas e não para as empresas. O que falta é mesmo vontade política.
Outra condição fundamental seria passar de estruturas centralizadas, só focadas no lucro de empresas transnacionais, para uma transição democrática, justa, veiculada, por exemplo, por comunidades de energia renovável. O que importa é mesmo coletivizar a energia, quer a produção de energia, quer as infraestruturas necessárias para tal. Também achamos que devia haver planeamento e governança responsável, porque acusamos a falta de um plano nacional estabelecido por lei que identifique áreas desertificadas ou industrializadas para a implementação desses projetos e também a falta de apoio para configurações energéticas alternativas, como as comunidades de energia renovável. Há uma desorganização organizada, e o Simplex Ambiental confirma-o.
Ao contrário das acusações que vos são frequentemente dirigidas, vocês não são contra as energias renováveis?
Não somos contra as energias renováveis, aliás, somos muito a favor. Somos contra o modelo centralizado de produção e propriedade. Ninguém acha que não devemos fazer a transição, mas temos de falar do modo como as coisas são feitas. É isso que, no fundo, queremos. E queremos ser incluídos e queremos um modelo descentralizado, muito focado nas comunidades de energia renovável, feitas por pessoas locais, para as pessoas locais.
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Entrevista feita por Vera Ferreira.
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