Mitos da transição energética portuguesa

Texto de Manuel Afonso

Energia: estamos a olhar para o sítio errado

“Fim-de-semana só com renováveis e sem necessidade de importação”.1 A produção de energia renovável em Portugal faz manchetes ou até anúncios oficiais, como no caso citado, que noutras latitudes seriam descritos como “propaganda”. Nos rankings internacionais, Portugal aparece regularmente no topo dos que, de toda a energia produzida nos seus países, têm uma maior percentagem de renováveis. Segundo a Direção-Geral de Energia e Geologia, “de julho de 2023 a junho de 2024, a produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis foi de 43 396 GWh, correspondendo a 76.4% do total da produção bruta mais saldo importador de eletricidade”.2 Ou seja, mais de 76% da eletricidade consumida em Portugal provem de fontes renováveis. O que parece ser, de facto, assinalável.

1. Fim-de-semana só com energias renováveis e sem necessidade de importação – XXIII Governo – República Portuguesa (portugal.gov.pt)

2. Renovaveis-202406.xlsm (dgeg.gov.pt)

Mas a realidade é mais complexa.

Vejamos uma outra manchete recente, menos sonora e badalada: “Dependência europeia de combustíveis fósseis subiu em 2022. Portugal fica ligeiramente abaixo dos 70%”.

O caso é fácil de compreender. Uma coisa é a eletricidade produzida (e até consumida), outra é o conjunto da energia consumida no país. Se a maioria da energia consumida em Portugal não é sequer elétrica, fica evidente que a eletricidade proveniente de fontes renováveis é apenas uma parcela pequena do que é utilizado. Contudo, há quem se confunda. O Jornal de Notícias, no início de junho, titulava uma peça garantindo que “Quase 90% da energia consumida em Portugal até ao final de maio era renovável”.3 Pouco abaixo, no lead, a expressão era “A produção renovável abasteceu 87% do consumo de eletricidade nos primeiros cinco meses”. Ou seja, o título como que assumia que toda a energia consumida no país era elétrica. Um erro crasso. Bastava ao autor do artigo ter pensado nas centenas de carros com que se teria cruzado já naquele dia: não consumiriam eles energia? E a imensa maioria não seria movida a gasolina ou gasóleo? E os aviões que viu cruzarem os céus, mover-se-iam a eletricidade? Ou as indústrias que, em vários pontos do país, produziam betão, vidro, plástico e outros materiais – o seu altíssimo gasto energético não seria alimentado através, por exemplo, da queima de gás fóssil? Claro que se trata apenas de um pequeno lapso a que todos estamos sujeitos. Porém, ele merece a nossa atenção, precisamente porque esta confusão entre produção e consumo e entre eletricidade e energia é comum e não poucas vezes patrocinada por discursos oficiais, de entidades públicas ou empresariais, para pintar de verde um país tão dependente dos combustíveis fósseis como é o nosso.

Resumindo: ainda que cerca de 70% da nossa eletricidade provenha de fontes renováveis, ela representa uma parte pequena da totalidade da energia que consumimos – cerca de 25%. Tudo o resto tem origem no gás, petróleo e derivados importados, que são altamente emissores e que representam a fatia de leão do gasto energético nacional. Neste quesito, que é o que realmente importa para as metas de descarbonização e para o planeta, Portugal está alinhado com a média da União Europeia, cujo consumo energético também é em cerca de 70% dependente dos combustíveis fósseis. No que realmente conta, não estamos no pelotão da frente.

Daqui se conclui que há muito a fazer em termos de transição energética. Por um lado, é essencial reduzir a zero a produção de energia a partir de combustíveis fósseis, que ainda subsiste nas centrais da Tapada do Outeiro e de Castanheira do Ribatejo (e noutras infraestruturas). Aliás, a eliminação da eletricidade proveniente da queima de gás (em território nacional ou importada) será um contributo significativo para a redução dos preços da eletricidade que, no modelo atual, são artificialmente inflacionados pelo uso desta fonte de energia, mais cara que as renováveis. Porém, o grande esforço passa pela eletrificação da mobilidade e da indústria. Sobre a primeira falamos adiante; quanto à segunda, há que alterar processos industriais para que não só a eletricidade renovável, mas também, em algumas circunstâncias, o hidrogénio, produzido a partir de fontes renováveis, possam substituir a queima de gás e derivados do petróleo.

Mobilidade: a distopia do carro elétrico e a miragem da ferrovia

Somos o país do automóvel. Para cada mil habitantes, há 549 carros.4 Estando um pouco abaixo da média europeia, o que se destaca é como os números crescem – em 2012, a média era de 406 carros por mil habitantes. Só entre 2019 e 2022, passaram a circular mais 450 mil carros em Portugal e, em 2023, o mercado automóvel cresceu 26%. É caso para dizer que, na autoestrada da crise climática, o nosso país vai em contramão… e com o pé no acelerador.

4. Dados Eurostat, 2022.

Estes são dados determinantes porque sabemos que os transportes são o setor que, em Portugal, mais gases de efeito estufa (GEE) emite, cerca de 30% do total. As emissões no setor aumentaram 58% entre 1990 e 2022, refletindo a dinâmica acima descrita. Sendo verdade que houve, entretanto, um decréscimo de 14% desde 2005, vemos que voltámos a acelerar em sentido contrário: desde 2013, as emissões do setor vêm aumentando, tendo apenas um decréscimo no período pandémico.5

5. Os dados citados neste parágrafo provêm do Inventário Nacional de Emissões de 2024, da Agência Portuguesa do Ambiente.

Apesar do aumento desmesurado do tráfego aéreo nos últimos anos, e de outras fontes de emissões como os inúmeros e mastodônticos cruzeiros que inundam Lisboa de turistas, é o tráfego rodoviário que é responsável pela imensa maioria das emissões nos transportes. O transporte de mercadorias é no nosso país ainda desproporcionalmente feito por rodovia – 89,3%, em 2021.6 Mas a dependência do carro individual continua a ser o grande entrave a cortes importantes no setor.

6. Transporte de mercadorias | Relatório do Estado do Ambiente (apambiente.pt).

Contudo, perante isto, o Governo faz planos otimistas. A recente revisão do Plano Nacional de Energia e Clima 2030 – que traça as metas de corte de emissões de GEE até ao final da década – propõe um corte de 40% das emissões no setor de transportes, face aos níveis de 2005 (data de referência para os compromissos internacionais de Portugal). Como vimos, Portugal já cortou 14% das emissões em comparação com esta data. Mas, nos últimos anos, a tendência no setor é de mais emissões, não menos. O aumento entre 2021 e 2022 é de 7%, e esta dinâmica é impulsionada pela aviação, com mais 22% de emissões, e a navegação, com mais 34%, mas também por um aumento de 7% na rodovia. Perante esta trajetória, fica muito pouco evidente como o Governo pretende alcançar o tal corte de mais 26 pontos percentuais em cinco anos e meio.

Parece haver dois eixos principais de políticas que, na visão dos responsáveis, alcançarão essa meta. A eletrificação da mobilidade rodoviária, essencialmente individual, e a aparente aposta na ferrovia. É aqui que encontramos os dois mitos deste setor.

O primeiro tem sido sobejamente debatido. Manter o paradigma do automóvel individual, alterando apenas a fonte de energia de combustíveis fósseis para eletricidade, não só não é desejável como, pragmaticamente, não resolve o problema. Não é possível fazer essa alteração no tempo e na escala necessárias para cumprir as metas de descarbonização. As frotas de automóveis a gasolina e gasóleo continuam a crescer e, estando a uso, têm um tempo de vida prolongado. A reconversão da indústria automóvel é relativamente lenta e não consegue suprir a exigências de uma transição rápida para o carro elétrico.

Cabe ainda assinalar que as necessidades de materiais críticos – como o lítio e não só – para a produção de carros elétricos, mantendo o paradigma de mobilidade atual, assente no carro individual, são inviáveis: promovem uma aceleração do extrativismo que, além de destruidor de territórios e comunidades, é ele próprio uma fonte de emissões de GEE, além de implicar um crescendo de tensões geopolíticas e até militares. Tudo para não pôr em causa os interesses de gigantes automobilísticas. Automóveis elétricos serão necessariamente parte de um modelo de mobilidade limpa, mas como complemento, não como eixo central – como parte de sistemas de mobilidade partilhada e não só, sobretudo em zonas menos densamento povoadas. E mesmo neste aspeto, planos para a conversão de automóveis a combustão para energia elétrica devem ser implementados com forte apoio público.

A rápida troca do paradigma de mobilidade assente no carro individual por outro, assente na mobilidade coletiva, movida a energias renováveis, é a única opção viável para um corte rápido de emissões nos transportes. Nessa alteração de paradigma, a ferrovia cumprirá um papel central – como uma espécie de coluna vertebral em que assenta todo um ecossistema de mobilidade limpa. Nesse sentido, as opções dos governos recentes e mesmo do atual parecem ir na direção certa. A expansão da ferrovia prevista no Ferrovia 2020 e no PNI 2030, nomeadamente a aposta na alta velocidade, a expansão do Metro de Lisboa, entre outros investimentos, parecem ir no sentido correto. Mas será assim?

Desde logo, temos de considerar os sucessivos atrasos na implementação destes planos. O Ferrovia 2020, por exemplo, ainda não foi concretizado sequer pela metade. Os atrasos já contaminam igualmente o PNI 2030. Décadas de sucessivo emagrecimento do Estado fizeram com que falte capacidade de planeamento e implementação. Mas essa parece ser apenas a ponta do icebergue: para além da fragilidade de implementar infraestruturas, falta investimento em material circulante e em recursos humanos. O recurso a privados, que é uma aposta crescente, como bem ilustra a aposta nas parcerias público-privadas para construir a alta-velocidade Lisboa-Porto, dificilmente solucionará o problema. Mas tudo indica ser essa a determinação do presente governo, que inclusive interveio na CP para reduzir o investimento em material circulante, assumidamente para abrir espaço ao privado. A deterioração do serviço público para favorecer empresas privadas não só é perversa, como é demonstrativa que estas últimas não são competitivas, necessitando dos favores autofágicos do Estado para prosperaram.

A ilusão aqui não é apenas o parco investimento público ou a fé ideológica no privado (ou a ânsia de favorecer as grandes empresas às quais tantos governantes respondem). Trata-se da ideia de que soluções técnicas ou infraestruturais são suficientes para alterar uma forma de estar e de viver que é definidora da nossa sociedade e, em particular, do nosso país.

A dependência do automóvel tem fortes raízes políticas, sociais e ideológicas. O ordenamento do território é desde logo uma delas. A falta de serviços públicos de proximidade, assim como de comércio, e o crescente afastamento entre locais de residência e trabalho são parte do problema. Assim como a urbanização ao longo de rodovias – e não da ferrovia – feita ao longo das últimas décadas. Medidas como a diminuição da jornada de trabalho – nomeadamente a semana de quatro dias – e a implementação do teletrabalho quando possível – mesmo que em locais de co-work ou outras formas comunitárias próximas dos locais de residência – diminuiriam grandemente os movimentos pendulares e a dependência do automóvel.

Isto implica mais do que intervir nas infraestruturas diretamente ligadas à mobilidade. É preciso pensar este problema de forma global e fazer dele um desígnio nacional, assente na consciência e mobilização da população. Precisamos de uma economia que não assente na expulsão da população, simultaneamente, do centro das cidades e do interior do país; que não dependa da aviação descontrolada; que assente menos em importações e mais no consumo de proximidade; em que se trabalhe menos horas e se tenha tempo para viver. Tudo isto cortaria muitas toneladas de emissões, revolucionando a mobilidade – e melhorando substancialmente a qualidade de vida.

Não nos enganemos: é necessário um investimento infraestrutural de grandes dimensões. Esse investimento deve ter como eixo a ferrovia – incluindo material circulante e trabalhadores –, mas ser pensado em termos intermodais, de forma global. Só o Estado tem capacidade e interesse num investimento tão grande e em tão pouco tempo, pelo que a revolução da mobilidade não deve recair sobre o privado. Temos de lutar por isso. Contudo, não podemos ficar por aí. Trocar rapidamente a mobilidade assente no automóvel particular por um modelo assente na mobilidade coletiva implica uma mudança de grande dimensão na economia, na habitação, no trabalho, nos serviços públicos. Estas são as boas notícias.